Tolerância zero para acidentes de trânsito

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Capa / 03 de Setembro de 2015 / 0 Comentários
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Segurança em vias deve ser tratada como prioridade de política pública; Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, se nada for feito, 1,9 milhão de pessoas morrerão no trânsito em 2030, tornando-se essa a sétima maior causa de mortalidade

Uma pessoa morre em um acidente de trânsito no Brasil. Cerca de 12 minutos se passam, mais uma falece da mesma causa. Mais 12 minutos, outra. E, assim, continua a cadeia que provocou 45,7 mil vítimas fatais no país em 2012 e 177,4 mil feridos, segundo dados do estudo “Retrato da Segurança Viária 2014”. A título de comparação, na Guerra do Iraque, morreram cerca de 37 mil pessoas em oito anos de conflito.
E o cenário é extremamente preocupante: houve um crescimento constante no número de óbitos nos últimos 14 anos. No ranking mundial de 2010 da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupava a 148ª posição, com um indicador de 22,5 óbitos por 100 mil habitantes, enquanto países latinos, como Chile (12,3), Argentina (12,6) e México (14,7), apresentavam índices consideravelmente menores. Vale ressaltar que, de acordo com esse relatório, o indicador brasileiro era ainda pior, de 22,9 óbitos a cada 100 mil habitantes. A OMS estima que, se nada for feito, 1,9 milhão de pessoas devem morrer no trânsito em 2030 (e, com isso, essa passará a ser a sétima maior causa de mortalidade no mundo). Nesse período, entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas sobreviverão aos acidentes a cada ano com traumatismos e ferimentos.
Com o objetivo de coordenar esforços globais e convocar os países para atuarem em prol da melhoria da segurança viária, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou, em 2010, o período de 2011 a 2020 como a “Década de Ação pela Segurança no Trânsito”. A meta global é salvar 5 milhões de vidas nesse intervalo, o que significa uma redução em torno de 33% no número de óbitos, tendo como referência os índices de 2011, ou de 50%, com base nas projeções para 2020.
Buscando verificar como o Brasil caminha para o alcance dessa meta, a Entrevias convidou representantes de diferentes setores da sociedade para apresentarem seu olhar quanto à busca de soluções em torno da redução de mortes e acidentes no trânsito no país e no mundo, bem como a análise das atuais ações nessa direção.

IMPACTO GERAL
Para contextualizar, o tema é emergencial, já que a sociedade, a economia, a saúde, a previdência, enfim, todas as áreas são impactadas. No âmbito social, existe uma conta impagável, que são as mortes (custo emocional imensurável) e a legião de sequelados de forma provisória ou permanente em todo o Brasil. Entre janeiro e dezembro de 2014, a quantidade de brasileiros indenizados por invalidez permanente pelo Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) chegou a 595.693, representando 78% de todas as indenizações pagas para acidentes no trânsito no país. Esse dado é 34% maior que o total de pagamentos por invalidez permanente registrados pelo seguro no mesmo período de 2013.
Não bastasse a tragédia que esses primeiros dados imbutem, podem-se citar outros prejuízos: são 12 bilhões de gastos pela Previdência Social com a violência no trânsito e entre 60% e 70% dos leitos hospitalares são ocupados por vítimas do trânsito. Isso sem citar cifras de custos com faltas e afastamentos no trabalho, com prejuízos para toda a cadeia produtiva (empresas), dentre outros. Grande parte desses recursos poderia ser direcionada ao investimento em outras políticas públicas sociais.

RADIOGRAFIA
Segundo o estudo “Retrato da Segurança Viária 2014”, o aumento gradual no número de mortos apresentou os maiores picos entre 2001 e 2002 (7,2%), entre 2003 e 2004 (6,1%) e, sobretudo, entre 2009 e 2010, quando o salto foi de 14,4%. Avaliando-se o indicador de óbitos por 100 mil habitantes, verifica-se que o Brasil teve um crescimento de 32,1% nos últimos 12 anos, chegando a assustadores 23,6 óbitos/100 mil habitantes.
De acordo com o Portal DataSUS, foram 42.266 vítimas fatais no Brasil em 2013. Ainda que tenha sido registrada redução em relação aos números de 2012, os dados são assustadores e colocam o Brasil na quarta posição no ranking dos países que mais matam no trânsito em todo o mundo. “Apesar da diminuição, os números não indicam que estamos entrando nos trilhos em relação à meta proposta. Precisamos de uma série com pelo menos três anos para confirmar a tendência de queda. O resultado positivo de 2013 não é suficiente para se afirmar essa tendência”, esclarece o diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária, José Aurelio Ramalho. “Porém, estamos longe de conquistar a segurança para todos. O Executivo, historicamente, não coloca o trânsito como uma área a ser priorizada, ou seja, como política de governo, agindo de forma pontual em resposta às demandas. O Legislativo, de maneira geral, segue o mesmo caminho. São necessárias tragédias para que uma legislação ou outra seja revisitada, mas no calor do momento. E o Judiciário também não pune exemplarmente os crimes de trânsito. Para complicar, temos ainda a formação de condutores inadequada, as políticas de educação e fiscalização deficientes – e pouco se olha e se faz para mudar o retrato atual da segurança viária no Brasil”.
Archimedes Azevedo Raia Junior, professor da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar e líder do Núcleo de Estudos em Trânsito, Transportes e Logística (Nesttral), corrobora: “Infelizmente, a redução dos acidentes com o aumento da segurança viária não é prioridade na pauta dos Três Poderes. Embora tenhamos um Código de Trânsito moderno e rigoroso, vários capítulos continuam sem a devida regulamentação, como, por exemplo, o relacionado aos pedestres. A educação para o trânsito, de importância fundamental para a mudança de paradigmas, não sai do papel. Apesar da Lei Seca, que sofreu alguns aperfeiçoamentos, um número enorme de condutores continua a beber e dirigir, provocando mortes e graves lesões. Se são pegos, não vão para a cadeia”. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Polícia Rodoviária Federal, Andrei Gomes acredita que a solução para a violência no trânsito é baseada no tripé de atuação: fiscalização presente, eficiente e corretamente direcionada; esforço legal no sentido de aperfeiçoar a legislação de trânsito vigente; e, por último, implantação da cultura de educação para o trânsito em todas as instâncias, desde a infância das pessoas.

PILARES DA SEGURANÇA
Na prática, a ONU direciona e apoia o desenvolvimento de planos regionais e nacionais que permeiam cinco pilares: Gestão da Segurança Viária; Vias Mais Seguras e Mobilidade; Veículos Mais Seguros; Conscientização dos Usuários e Resposta ao Acidente.
O diretor-presidente do Observatório explica que as melhores iniciativas, definidas a partir desses pilares, são aquelas precedidas de bons diagnósticos estatísticos e com definição de procedimentos e metas claras, além de um acompanhamento constante e de transparência nas ações. Após ver seu índice de mortalidade no trânsito crescer de 11,4 para 14,5 a cada 100 mil habitantes, entre 2005 e 2008, a Argentina criou um órgão central para auxiliar e supervisionar as províncias na implantação de programas de segurança viária. Fundada com o apoio do Banco Mundial, a Agência Nacional de Segurança Viária ajudou o país a reduzir as mortes no trânsito para 12,6/100 mil habitantes em 2010, de acordo com um levantamento de 2013 da OMS. Uma medida prática foi a concepção do chamado Formulário Laranja, usado por policiais de todo o país para investigar acidentes.
Nesse sentido, a Gestão da Segurança Viária prevê a coleta eficiente de dados de acidentes, o estabelecimento de uma agência de segurança viária, o desenvolvimento de estratégia nacional, a definição de metas e o financiamento para a viabilização de projetos na área. No caso de Vias Mais Seguras e Mobilidade, o desafio é melhorar o planejamento (projeto e construção) das vias, pensando, sobretudo, nos mais vulneráveis no trânsito - pedestres, ciclistas e motociclistas - e garantindo-se infraestrutura e investimentos em meios de transportes mais seguros. O terceiro campo de atuação seria a Segurança Veicular por meio da disponibilização de veículos cada vez mais seguros, com padronização técnica global, realização rígida de testes de segurança, desenvolvimento tecnológico dos veículos, ampliando-se os itens de proteção, como air bag, freio ABS e investimentos em pesquisa e desenvolvimento. No item Conscientização dos Usuários, os países devem focar a orientação e a informação aos motoristas sobre o uso de equipamentos individuais de segurança, como cinto, capacetes e cadeirinha; além da gestão da velocidade e da implantação da ISO 39001. Essa certificação foi publicada em 2012, como uma ferramenta para ajudar as organizações a reduzirem e eliminarem a incidência e o risco de mortes e ferimentos graves resultantes de acidentes de trânsito, sendo aplicável em entidades públicas e privadas que interagem com o sistema viário e identificam os elementos de boas práticas na gestão da segurança viária. E o quinto pilar apontado pela ONU diz respeito à resposta ao acidente. O foco é a garantia de qualidade no atendimento pré-hospitalar e de reabilitação, no seguro ao usuário e nas práticas que colaboram para a melhoria do socorro pós-acidente, como treinamento de equipes e disponibilidade de equipamentos. “Antes de mais nada, é preciso reconhecer, por meio de uma boa análise estatística, quais são os principais fatores de risco de acidentes da localidade específica onde se pretende implantar uma política pública de segurança viária. Isso significa que uma boa prática sobre o uso do capacete na região Nordeste do país talvez não produza resultados efetivos na região Sul, pois as características de estrutura e de comportamento humano são diferentes. Existem algumas iniciativas em municípios brasileiros que se propõem a adotar esse tipo de estratégia, porém enfrentamos um terrível problema de descontinuidade. Em função do sistema de gestão pública brasileiro, que se baseia em ciclos de quatro anos, o que, infelizmente, acontece é que programas e projetos de médio e longo prazos dificilmente são concluídos, o que torna o resultado final relacionado aos índices de acidentes pouco representativo. Ou seja, o fator de comportamento humano, que é o principal causador de acidentes, necessita de ações de médio e longo prazos para surtirem efeito, e, nesse ponto, estamos realmente atrasados com relação às boas práticas internacionais, como na Europa, no Japão, na Austrália e nos Estados Unidos”.
Em sua avaliação, no Brasil, a redução da velocidade máxima em muitas vias do Brasil, promovida pelos órgãos gestores do trânsito, principalmente nos grandes centros, a elevada quantidade de veículos (a frota nacional, há décadas, cresce 7% ao ano) e a efetividade de algumas leis, como a Lei Seca, por exemplo, são fatores que contribuem para que o número de mortes caia.


PRÁTICAS MUNDIAIS
Apesar de o Brasil ser signatário da Década Mundial de Ações para a Segurança do Trânsito, instituída pela ONU, passada praticamente metade do período, nada ou quase nada foi feito para mudar o grave quadro da morbimortalidade nacional. “Falta vontade política. A segurança viária nunca esteve na pauta dos políticos brasileiros. Aliás, os transportes não são prioridade nacional. No governo federal, por exemplo, as responsabilidades pelos transportes estão totalmente pulverizadas em diversos ministérios e secretarias, o que torna extremamente difícil desenvolver e implantar uma política consistente de transportes. O Brasil possui leis (CTB, Lei Seca, Plano Nacional de Mobilidade Sustentável etc.) adequadas, porém é preciso que os nossos governantes, aqui se considerando as três esferas de poder, assumam efetivamente a responsabilidade de resolver os graves problemas de insegurança viária”, analisa o professor Arquimedes.
Um caminho interessante é se inspirar em boas práticas reconhecidas internacionalmente, como a Visão Zero. Criada pela Suécia, no fim de 1990, tornou-se uma política de segurança de tráfego com base em quatro elementos: ética, responsabilidade, filosofia de segurança e criação de mecanismos para a mudança. O parlamento sueco votou, em outubro de 1997, pela adoção dessa política, e, desde então, vários outros países vêm seguindo o exemplo.
O sucesso do projeto está na união entre o Estado e a sociedade. As propostas são amplamente discutidas com a população antes de sua implantação. A partir daí, a adesão é inerente, não há contestação. O programa prevê reuniões para se ouvirem os usuários de vários modais, além de motoristas, pedestres e ciclistas, para que todos discutam as melhorias, visando à segurança em seus deslocamentos.
A política estabelece, sobretudo, que a responsabilidade é partilhada entre quem desenha as vias e quem as utiliza. E, sempre que houver fatalidades, algo terá de ser feito para que o fato não se repita: não basta estabelecer em lei como o motorista deve conduzir, mas é necessário fazer com que o desenho da via facilite uma condução segura pelos usuários. Curvas de alta velocidade e longas retas dentro das cidades, expondo os mais frágeis ao risco, são os exemplos mais claros de como o desenho viário contribui para a insegurança do sistema.
A melhoria do planejamento das vias gera, em benefício de todos os usuários de trânsito e, em particular, dos mais vulneráveis, como pedestres, ciclistas e motociclistas, a garantia de infraestrutura segura e o investimento em outros meios de transporte, como trens. O Chile, em menos de duas décadas, reduziu seu índice de mortalidade de 17,1 para 12,3/100 mil habitantes. Uma das medidas mais bem-sucedidas foi a criação de calçadas para pedestres nas vias com muito tráfego, reduzindo-se em 8,7% os óbitos.


INFRAESTRUTURA BRASILEIRA
No Brasil, o cenário é antagônico. Levantamento de 2014 da Confederação Nacional de Transportes (CNT) mostra que, dos quase 1,7 milhão de km da malha rodoviária, apenas 12% são pavimentados, o equivalente a 203,5 mil km, sendo 65,9 mil nas estaduais federais; 110,8 mil nas estaduais; e 26,8 mil nas municipais. Verifica-se, sobretudo, número grande de pontos críticos e de desgastes, que resultaram na morte de mais de 8.000 pessoas no ano passado.
A pesquisa da CNT avaliou, principalmente, o estado geral, a pavimentação, a sinalização e a geometria das vias. Segundo o estudo, 37,9% das rodovias estão em ótimo ou bom estado; 38,2, em estado regular; 17% foram consideradas ruins, e 6,9%, péssimas. No que se refere à geometria da via – item que avalia tipo de rodovia, existência e/ou condição da faixa adicional de subida e de curvas perigosas, além de pontes e viadutos –, 22,1% tiveram avaliação boa ou ótima; 29,3%, regular; e 48,6%, ruim ou péssima.
As rodovias concedidas à iniciativa privada apresentaram resultados mais satisfatórios do que as sob gestão pública. Enquanto apenas 29,3% destas tiveram seu estado geral avaliado como bom ou ótimo, no caso das concedidas, o índice sobe para 74,1%.
O gerente corporativo de operações da Arteris, Elvis Granzotti, diz que o grupo realiza intervenções estruturais em trechos considerados perigosos com o objetivo de se reduzirem acidentes. “A partir de dados e imagens registrados no sistema operacional das concessionárias, é possível analisar e identificar pontos que necessitam de maior atenção. Neste momento, são realizados cruzamentos de informações para determinar os tipos de acidentes, horários, veículos envolvidos, vítimas e causas prováveis. Após as análises, são discutidas e implementadas as soluções adequadas a cada caso: incrementos na sinalização, obras de melhoria, implantação de linhas de estímulo à redução de velocidade (Lerv), iluminação de trechos e apoio para reforço na fiscalização, dentre outras iniciativas”.


EXEMPLO
Sem dúvida, os profissionais do transporte rodoviário de cargas são as principais vítimas da ausência de políticas em torno da segurança viária. O dia a dia nas estradas faz com que eles vivenciem a falta de estrutura rodoviária adequada, a sinalização precária, a inexperiência e a imprudência de motoristas. “Nos últimos quatro anos, registramos queda acima dos 15% nos índices de mortalidade e acidentes em rodovias federais. Mas cito que é pouco, pois nosso ideal é zerar os índices. Não podemos achar naturais ou cotidianas as milhares de mortes que ocorrem no trânsito brasileiro”, pontua Andrei Gomes, da Polícia Rodoviária Federal Nacional. “Em valores absolutos, os caminhões estão envolvidos em menor número de acidentes se comparados aos veículos leves. Mas, com certeza, um acidente com um caminhão pode ter gravidade maior devido à estrutura e ao peso do veículo”, compara Idaura Lobo Dias, especialista em trânsito da Perkons e cofundadora do site Trânsito Ideal.
“Não é verdade que os veículos pesados são os vilões no trânsito. Para se ter uma ideia, em 2011, os caminhões e ônibus foram responsáveis por 3,6% e 0,6% dos acidentes, respectivamente. Atualmente, as grandes vilãs do trânsito são as motocicletas, com 34% do total de acidentes”, correlaciona o diretor-presidente do Observatório.
Os profissionais de transporte de automóveis de Minas Gerais dão exemplo de profissionalismo e estão alinhados à tendência internacional. O Sindicato dos Cegonheiros do Estado, em parceria com a Sada Transportes, implementou, em janeiro de 2014, o controle da velocidade máxima dos caminhões de acordo com as sinalizações. A iniciativa visa reduzir acidentes, preservar a saúde dos motoristas e garantir a excelência na prestação do serviço e a segurança da sociedade.

“Iniciativa inédita na área sindical, elaboramos, no ano passado, uma estratégia para reduzir os acidentes entre nossos associados. A diminuição da velocidade, juntamente com medidas de conscientização, gerou a redução em mais de 70%. As famílias de nossos motoristas e nossos associados aplaudiram essa iniciativa do sindicato, pois vidas foram preservadas e bens materiais, protegidos. Além disso, nosso custo mensal com seguro caiu extremamente. Um trabalho que teve aceitação geral da categoria”, comemora o presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto), Carlos Roesel.

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