A AJUDA QUE CRUZOU O BRASIL
Representantes da sociedade mineira e do setor que leva desenvolvimento ao Brasil se reúnem em uma corrente de solidariedade para ajudar venezuelanos em Roraima
Equipe voluntária descarrega o caminhão de doações em São Carlos (SP). Mantimentos se juntaram a outros para seguir em direção a Boa Vista.
Sem dinheiro, sem comida, sem segurança, sem assistência à saúde e com o sonho de ter uma vida mais digna. Essa realidade levou, nos últimos meses, venezuelanos para as cidades fronteiriças de Roraima e sua capital. São crianças, jovens, adultos e idosos que buscam um lar frente à crise social e econômica da Venezuela. A Prefeitura de Boa Vista, a capital do Estado, estima que cerca de 40 mil venezuelanos entraram na cidade nos últimos meses, o que representa mais de 10% dos cerca de 330 mil habitantes do município. O número de imigrantes equivale a aproximadamente a população de uma cidade como Boituva, em São Paulo.
O deslocamento dos venezuelanos que chegam ao Brasil pela fronteira é complexo. Muitas vezes, por não terem dinheiro para custear passagens ou táxis, alguns imigrantes percorrem a pé o caminho de mais de 200 km que separa Pacaraima, na fronteira, e de Boa Vista.
Quando chegam, encontram os abrigos lotados e conterrâneos que vivem em situação de rua. O secretário de Saúde de Boa Vista, Marcelo Batista, informa que o município está sob o alerta de um possível surto de sarampo após uma criança venezuelana de 1 ano ter sido diagnosticada com a doença. O vírus havia sido erradicado desde 2015 no país, de acordo com o secretário, que ressaltou que uma barreira sanitária em Pacaraima é essencial. O Estado tem apenas um hospital de alta complexidade, e, atualmente, metade da capacidade de atendimento da saúde está sendo ofertada aos estrangeiros.
Corrente do bem
Frente à situação de calamidade, o local recebeu solidariedade de longe. Sensibilizada com os venezuelanos e a população roraimense, uma corrente do bem foi criada. A ideia de ajudar surgiu do Grupo Transportando Ideias. Imediatamente, o Rotary Club de Contagem iniciou uma mobilização e a ONG Fraternidade sem Fronteiras cuidou da logística da entrega. Diversos representantes da sociedade se uniram na arrecadação de alimentos e contaram com o serviço de transporte rodoviário de cargas para que as doações chegassem a quem precisava. Foram arrecadadas 363 cestas básicas, que se juntaram com outras doações, somando 25 toneladas de produtos.
Foi preciso usar uma carreta para transportar todo o material arrecadado
As cestas mineiras, doadas por empresários, representantes do transporte rodoviário de cargas, entidades sem fins lucrativos e cidadãos, integraram tudo que foi capitalizado pela organização não governamental (ONG) Fraternidade sem Fronteiras. O diretor da instituição, Ranieri Dias, conta que, desde o ano passado, atua junto à população venezuelana que busca abrigo no Brasil. “Em novembro, montamos um centro de acolhimento, oferecendo moradia, alimentação e aulas de língua portuguesa em Boa Vista. Nessa época, eram cerca de 200 pessoas. Em janeiro deste ano, começaram a chegar ao país, por Roraima, aproximadamente 1.200 venezuelanos por dia. Desde então, não conseguimos abrigar todos e estamos oferecendo alimentação para os que estão na rua”, explica.
Equipe voluntária descarrega o caminhão de doações em São Carlos (SP). Mantimentos se juntaram a outros para seguir em direção a Boa Vista.
Assim, começou uma mobilização para arrecadar todo tipo de ajuda. O Rotary de Contagem foi um dos parceiros. “Somos uma organização de líderes de negócios e profissionais que prestam serviços humanitários e temos o lema ‘Dar de si antes de pensar em si’. Por isso, participar dessa ação vai ao encontro de nossa missão. Fiquei feliz com o resultado, pois o envolvimento, a integração, o comprometimento com os venezuelanos me orgulharam”, emociona-se o presidente da instituição, Osvônio Rubens de Miranda.
Wenceslau Álvares Francisco de Moura, presidente da Associação Comercial e Empresarial de Betim (ACE Betim), também manifesta sua alegria: “É uma ajuda que tem que ser feita, e estamos à disposição para continuar a colaborar”.
O setor de transporte rodoviário de cargas também contribuiu. Entre os participantes está o Sindicato dos Transportadores de Combustíveis e Derivados de Petróleo do Estado de Minas Gerais (Sindtanque). O diretor da instituição, José Geraldo de Castro Gonçalves, conta que, por meio de recursos próprios, o sindicato colaborou com a compra dos alimentos. “Nosso presidente, Irani Gomes, teve muita sensibilidade e acha importante ajudar o próximo”, diz.
O Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto) esteve presente. “Faz parte de nossa trajetória contribuir para oferecer melhores condições de vida aos nossos associados e ao próximo. Diante de uma causa tão importante, que busca trazer dignidade para os vizinhos venezuelanos, o sindicato não se furtou da responsabilidade de ajudar”, ressalta o presidente do Sintrauto, Carlos Roesel.
O presidente da Cooperativa de Automóveis e Consumo do Estado de Minas Gerais (Coopercemg), José Geraldo de Faria, destaca o espírito de cidadania dos cooperados: “Todos na vida passam por momentos não previstos, e temos o compromisso de ajudar, de ser solidários. Vamos contribuir, pois faz parte de nossa missão de vida”.
Proprietário da Transportadora Damião Ltda., Damião Tárcio Soares Gomes, emprestou o caminhão de sua empresa, com a estrutura necessária, para que as doações da região metropolitana de Belo Horizonte chegassem a Campinas e, em seguida, a Boa Vista. “Sempre que precisarem, estaremos à disposição”, afirma.
O diretor da Entrevias, Geraldo Eugênio de Assis, acompanhou a chegada das doações a Boa Vista e viu a mobilização de instituições – ONGs e prefeitura – para oferecer o suporte possível. A equipe da revista tentou contatar o órgão municipal, mas não teve retorno.
Reconhecimento internacional
Luiz Fernando Godinho, porta-voz da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (Acnur) no Brasil, cumprimenta todos os envolvidos: “Todo tipo de ajuda é muito bem-vinda. A mobilização em Minas e em outros Estados mostra o potencial de solidariedade do povo brasileiro”.
Godinho conta que a Acnur tem o papel de apoiar as medidas públicas, contribuindo para a efetividade das políticas. Entre as frentes de atuação da entidade estão monitoramento da fronteira, recepção, apoio e gerenciamento de abrigos – buscando garantir itens como materiais de higiene e de cozinha –, registro, documentação e proteção em alguns casos.
“Atualmente, estamos transferindo venezuelanos que estão em praças de Boa Vista para um abrigo aberto na semana passada pelo Exército brasileiro. Desde meados do ano passado, a Acnur está em Boa Vista atuando em parceria com o poder público e com instituições não governamentais com o objetivo de oferecer todo o apoio”, pontua o porta-voz da instituição.
Próximos passos
O diretor da ONG Fraternidade sem Fronteiras, Ranieri Dias, agradece a contribuição de cada parceiro da iniciativa – que reuniu ao menos 20 instituições de Minas e de São Paulo – e apresenta os próximos passos: “Vamos fazer o cadastramento de todos os venezuelanos, identificando profissões, para buscar recolocação profissional e inserção deles na sociedade brasileira. O objetivo é ajudá-los a viverem em cidades do interior do Brasil com dignidade e qualidade de vida”.
Muitos mantimentos foram recolhidos em BH, Contagem e Betim
O governo federal publicou um decreto reconhecendo a “situação de vulnerabilidade” em Roraima e editou uma medida provisória anunciando ações de assistência emergencial para imigrantes venezuelanos no Estado em diversas áreas, como social, de saúde, educação, alimentação e segurança pública. Elas serão coordenadas por um comitê federal composto por representantes de ministérios e conduzidas pela União, pelo Estado e pelos municípios.
Segundo o documento, as medidas visam também ampliar as políticas de mobilidade, distribuição no território nacional e apoio à interiorização dos imigrantes venezuelanos, desde que eles manifestem essa vontade.
De acordo com Camila Asano, coordenadora do programa de política externa da ONG Conectas Direitos Humanos, o apoio aos venezuelanos que chegam via Roraima e querem procurar oportunidades em outros locais é fundamental, já que o mercado de trabalho no Estado é bem restrito. “A prática de interiorização necessita, no entanto, de condições mínimas. Eles precisam estar documentados. É importante que as cidades que forem receber os venezuelanos estejam articuladas para evitar ações problemáticas como no caso da imigração dos haitianos há alguns anos”, explica.
Imigrantes acampam em praça de Boa Vista
Ela avalia que o governo Michel Temer demorou muito para assumir a responsabilidade frente ao fluxo de imigrantes venezuelanos. “A gestão migratória é de competência federal. Espero que eles não foquem tanto o controle de segurança, já que a prioridade é a questão humanitária. O importante é conseguir que esses imigrantes sejam inseridos na sociedade”, salienta.
A Lei de Imigração que entrou em vigor no Brasil, regulamentada em novembro de 2017, trouxe uma mudança de paradigma. Antes, o Estatuto do Estrangeiro entendia a imigração como uma questão de segurança nacional. A nova lei a enquadra nos direitos humanos. No entanto, em visita a Roraima, o presidente Temer foi acompanhado de um general e dos ministros da Defesa e da Justiça, o que gerou críticas, uma vez que a situação sugeria a militarização e um maior controle das fronteiras.
Alojamento
A Prefeitura de Boa Vista apresentou um terreno de 40 mil metros quadrados no município para alojar os venezuelanos que, atualmente, estão em abrigos improvisados ou nas ruas da capital de Roraima. A construção é vista pela gestão municipal como urgente em razão da precária situação dos refugiados e da proximidade da temporada de chuva na região, em abril.
Famílias venezuelanas moram em acampamento e tentam uma nova vida em Boa Vista
A estimativa é que a área tenha capacidade para abrigar entre 12 mil e 13 mil refugiados, o que seria suficiente, neste momento, para atender os venezuelanos em pior situação.
Contexto
O presidente Nicolás Maduro transformou a Venezuela numa ditadura, na qual adversários políticos são perseguidos, presos, torturados e mortos, e as eleições, fraudadas. Ao mesmo tempo, o país vive uma recessão marcada pela escassez de produtos básicos e pela explosão no número de casos de desnutrição. Maduro, por sua vez, se diz vítima da pressão de uma oposição incapaz de conquistar o poder pelas vias eleitorais, a qual atua respaldada sobretudo pelos Estados Unidos, cujo secretário de Estado, Rex Tillerson, já sugeriu em público que o governo da Venezuela fosse deposto por força militar.
O presidente venezuelano também refuta as acusações de fraude eleitoral e diz que a nação está aberta a observadores internacionais. Com o fracasso das negociações entre governo e oposição que vinham ocorrendo na República Dominicana desde fevereiro e com a proximidade de uma nova eleição presidencial, anunciada por Maduro para 22 de abril, crescem os preparativos para que o Brasil receba novos imigrantes venezuelanos.
Doações encheram galpão e foram separadas antes do envio a Boa Vista
Porta de entrada
De acordo com a Polícia Federal, em 2017 foram registrados 22.247 pedidos de refúgio por venezuelanos, um recorde de solicitações nos últimos anos. Nem todos os venezuelanos são considerados refugiados porque o refúgio é concedido àqueles que sofrem perseguições políticas, étnicas e religiosas. Mas muitos já pedem esse visto porque, ao conseguirem apenas o documento de solicitação, podem emitir documentos e trabalhar legalmente no Brasil.
Além do refúgio, os estrangeiros agora também solicitam a chamada “residência temporária”, que foi permitida no ano passado e passou a ser gratuita desde agosto. Em 2017, foram registrados mais de 8.000 pedidos dessa nova modalidade.
Apesar de o fluxo de venezuelanos ter aumentado desde o fim de 2016 no Brasil, uma nova leva chegou após a Colômbia colocar mais travas para a entrada de refugiados no país. Contudo, o Brasil está longe de ser o principal destino dos venezuelanos. São cerca de 40 mil imigrantes, menos de 0,1% da população brasileira. A Colômbia já recebeu ao menos 600 mil pessoas, mais de 1,2% da população da nação. A estimativa do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (Acnur) é que 1,5 milhão de cidadãos saíram da Venezuela desde 2014. Eles estão deixando para trás seu país, que registrou 2.700% de inflação no ano passado, para tentar sobreviver.
Apoiadores
Participaram da ação os Anjos do Asfalto/MG, a Associação de Benefícios e Proteção ao Amigo Caminhoneiro (Abpac), a Associação Comercial e Empresarial de Betim (ACE Betim); a Associação Particular de Ajuda ao Colega (Apac Sul); a Associação de Prevenção de Acidentes e de Assistência aos Amigos e Cooperados da Coopercemg (Apacoop); a Associação de Proteção aos Transportadores de Cargas (Autocarga); a Associação de Proteção entre Amigos Transportadores de Cargas do Estado de Minas Gerais (Ascarg-MG); a Autoport Transportes e a ConLuck Contabilidade.
Também participaram: Cooperativa de Automóveis e Consumo do Estado de Minas Gerais (Coopercemg); Federação das Empresas de Transportes de Cargas do Estado de Minas Gerais (Fetcemg); Grupo Transportando Ideias; Mercado Verde; Prevenir Proteção Veicular; revista Entrevias; revista Mais; Rotary Contagem; Sindicato das Empresas de Transportes de Cargas do Estado de Minas Gerais (Setcemg); Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas do Centro-Oeste Mineiro (Setcom-MG); Sindicato dos Transportadores de Combustíveis e Derivados de Petróleo do Estado de Minas Gerais (Sindtanque); Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto-MG); Tegma Transportes e Transportadora Damião.
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