Enchentes e deslizamentos de encosta de terra. Vítimas com diversas gravidades. Infelizmente, esse cenário se torna cada vez mais frequente no Brasil, especialmente no atual contexto de mudanças climáticas. É necessário mitigar este problema de classe mundial por meio da implementação de políticas públicas estruturantes e ações de toda a sociedade. Isso precisa de tempo, mas a natureza cansou de esperar, e as catástrofes climáticas fazem parte do calendário das cidades do país.
Frente a essa realidade, estudantes se preparam para o enfrentamento da calamidade. No dia 9 de novembro, 250 universitários do Campus Contagem da PUC Minas participaram do Il Simulado de Incidente com Múltiplas Vítimas (SIMUV). Alunos e professores de diversos cursos da universidade, com destaque para os cursos de biomedicina, enfermagem e medicina, passaram a manhã na Associação Comunitária dos Moradores da Vila Pérola tendo uma experiência quase real de atuar em um desastre natural.
Com os objetivos de garantir uma imersão muito próxima da realidade e de proporcionar um aprendizado com excelência técnica, essa atividade acadêmica recriou de forma simulada e controlada o ambiente de uma situação de emergência climática, caracterizada por enchentes e deslizamento de uma encosta de terra em uma região do município de Contagem muito propícia a viver uma situação como essa.
“O evento simulou, de forma realística, um desastre ambiental, envolvendo 68 vítimas de múltiplas gravidades. A ação foi composta por um cenário complexo em ambiente controlado. Nesse contexto, foi aplicado o método START (espécie de triagem primária de acordo com a gravidade) envolvendo oito vítimas vermelhas, 15 amarelas, 43 verdes e duas cinzas”, explica professor Júlio César Batista Santana, diretor acadêmico da PUC Minas campus Contagem, enfermeiro doutor em Bioética e voluntário dos Anjos do Asfalto.
As vítimas, segundo ele, foram avaliadas e retiradas da zona quente pela equipe do Corpo de Bombeiros e dos Anjos do Asfalto e, posteriormente, foram atendidas no posto médico avançado pelas equipes formadas por professores e acadêmicos dos cursos de medicina e enfermagem da PUC Minas, juntamente com a equipe multiprofissional do SAMU de Contagem e Macro Centro, sendo que as duas vítimas vermelhas foram transferidas para o Hospital Municipal de Contagem (HMC) e uma para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Ressaca.
Experiência prática
A iniciativa partiu da universidade em integração com o Diretório Acadêmico do curso de Medicina, foi coordenado pelo professor Júlio César, e teve participação efetiva de professores. Cada docente e/ou profissional ficou responsável por uma frente específica no atendimento.
Os professores e alunos do curso de Biomedicina, por exemplo, atuaram juntamente à Polícia Civil; a equipe do curso de engenharia civil atuou junto aos profissionais da Defesa Civil; a equipe do curso de psicologia deu suporte aos familiares e às vítimas abaladas emocionalmente. E as equipes dos cursos de enfermagem e medicina, atuaram no atendimento às vítimas supervisionadas por professores e profissionais do SAMU, HMC e UPA Ressaca.
O diretor enfatiza que o intuito do simulado foi proporcionar uma experiência que aprimorasse as habilidades técnicas, cognitivas e interpessoais dos participantes no incidente com múltiplas vítimas. Ele conta que essa é uma inovação do processo de ensino-aprendizagem, que aliou a prática ao processo formativo do aluno, oportunizando a vivência em tempo real de uma tragédia e o que fazer em momentos de crise.
“Não se trata apenas de uma capacitação técnica, mas também do desenvolvimento das habilidades de liderança, de autocontrole, do trabalho em equipe e responsabilidade social, fundamentais para formar profissionais de saúde conscientes de seu papel na sociedade.”
Quanto à assistência às vítimas politraumatizadas, Júlio César pontua que os estudantes puderam desenvolver diversas habilidades, como aplicação do XABCDE Ð método que padroniza o atendimento inicial e define prioridades na abordagem ao trauma para detectar lesões de risco iminente de morte Ð, segurança da cena, técnicas de pranchamento e imobilização, abordagem de vias aéreas e transporte do paciente crítico.
“Para os estudantes da medicina e enfermagem, atuantes como socorristas, a contribuição que fica é o fato de serem preparados teoricamente e têm a oportunidade de praticar em um ambiente simulado controlado ao lado de profissionais da área, permitindo desenvolvimento de habilidades como autonomia, liderança, comunicação, manejo e cuidados prestados em um incidente com múltiplas vítimas. Para alunos da biomedicina, atuantes como peritos, também previamente treinados, podem colocar em prática as habilidades de perícia criminal, lidando com os óbitos da cena. Para os estudantes da engenharia civil, houve oportunidade de acompanhar o trabalho da Defesa Civil na liberação para entrada dos socorristas na cena. Já da psicologia, puderam colocar em prática o acolhimento das vítimas e familiares”, avaliam os estudantes de medicina da PUC Minas campus Contagem Bernardo Santos Ferreira, Mariana de Oliveira Freitas e Raíssa Correia de Oliveira. Eles são presidentes do Diretório Acadêmico de Medicina Zilda Arns (DAMZA) Gestão 2023-2024 e coordenadores gerais do II SIMUV.
Eles contam que no dia do simulado a maioria dos participantes ficou satisfeita quanto ao evento e à sensação de dever cumprido. “Foi feito um debriefing (espécie de reunião após uma atividade) ainda no local e discussões dos pontos a serem melhorados. A maioria dos alunos e profissionais com quem tive contato gostou do evento e avaliou positivamente o desempenho e a contribuição para sua vida acadêmica. Além disso, houve alunos que participaram do I SIMUV voltaram a participar do II SIMUV e perceberam uma evolução tanto pessoal quanto da organização do evento.”
Em entrevista ao canal da PUC Minas no Youtube, o pró-reitor adjunto da PUC Minas Contagem, professor Martinho Campolina Rebello Horta, contou que a demanda pelo Simuv surgiu no início de 2023 a partir de uma aspiração dos alunos do curso de medicina da PUC Contagem. “A preparação para o Simuv começa alguns meses antes da simulação efetiva. Ela envolve, além de todo planejamento logístico, a realização de diversas atividades teórico-práticas para capacitação dos alunos”, explicou.
Importância de uma rede de apoio
O resultado profícuo das atividades é fruto da união de esforços de parceiros com habilidades diversas e, todos, com papel fundamental na assistência às vítimas de incidentes. “Para os Anjos do Asfalto, é fundamental participar de simulados com o propósito de formar profissionais para atender a complexidade que a situação de catástrofe demanda. Nossa organização tem ampla experiência nessas situações e ter feito parte foi muito gratificante. Sempre esperamos que os incidentes não aconteçam, mas infelizmente estão cada vez mais frequentes e acreditamos que os estudantes que participaram do simulado poderão colaborar em situações adversas”, avalia o presidente dos Anjos do Asfalto, Geraldo Eugênio de Assis.
Para o professor Júlio César, a equipe dos Anjos do Asfalto desenvolveu um papel impecável na atuação no II SIMUV, em integração com a PUC Minas e demais parceiros. “Conseguiram prestar um atendimento com maestria no cenário complexo, proporcionando segurança para todos e contribuindo de forma efetiva nas diversas etapas do simulado. Insta salientar, que a experiência dessa equipe em cenários complexos potencializou a qualidade de atendimento, merece todos os nossos agradecimentos e aplausos.”
Além do grupo de socorristas, o simulado contou com a parceria da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros Militar, Polícia Civil, Polícia Militar, Guarda Municipal, SAMU Contagem e Macro centro, UPA Ressaca, Hospital Municipal de Contagem, TransCon, dentre outros.
“Acredito que o simulado oportunizou uma grande vivência de aprendizado para esses alunos. Sem sombra de dúvidas, várias correntes literárias da educação preconizam que experimentar na prática o desenvolvimento de habilidades e competências é a melhor forma de criar sinapses e, dessa forma, acumular o aprendizado em médio e longo prazo. Então eu acho que foi uma atividade muito efetiva e que os alunos tiveram a oportunidade de aprender de uma forma mais assertiva e, consequentemente quando eles se formarem e por ventura vierem a trabalhar com essa forma de atuação, vão ter um desempenho muito mais-eficaz”, analisa Daniel Fernandes, enfermeiro emergencista, professor universitário do curso de medicina e assessor de saúde do consórcio intermunicipal Aliança para Saúde, o órgão gestor do SAMU Macrocentro.
O professor Daniel ressalta a importância de realizar simulados de incidente com múltiplas vítimas porque essas situações sobrecarregam a rede de urgência e emergência, os serviços de segurança pública e requerem que os profissionais que atuam nessas áreas tenham condições de executar habilidades, competências e lançar mão de ferramentas para o gerenciamento da crise.
“Por isso, treinar antes é essencial para que o desempenho dessas equipes seja eficaz e para que os resultados alcançados garantam mais condições de sobrevivência para as vítimas envolvidas e assim, consequentemente, resulte em maior qualidade e segurança do trabalho das equipes do SAMU, do corpo de bombeiro, das polícias envolvidas, da defesa civil e da rede estruturada e do poder público de modo geral.”
Professor Júlio Cesar também destacou a importância do trabalho do SAMU durante o simulado. “Ele foi uma das nossas principais referências, essencial para o desenvolvimento das atividades.”
Preparação do próximo
Dada a importância acadêmica e de utilidade pública, no próximo ano a proposta é ampliar a participação de alunos e docentes, envolvendo mais cursos da universidade em um cenário que possibilite uma atuação de vários protagonistas, O local e o tipo de incidente de múltiplas vítimas ainda serão definidos.
A primeira edição foi realizada na PUC Minas Contagem em setembro de 2023 e contou com um cenário envolvendo um acidente com ônibus, veículo de passeio, moto e atropelamento.
A edição deste ano, segundo o coordenador e professor Júlio César, foi mais complexa, pois contou com mais dois cursos, aconteceu em local externo e envolveu uma grande rede de parceiros.
“Esperamos que esta iniciativa inspire e capacite as futuras gerações de profissionais de saúde, a fim de preparar indivíduos seguros para enfrentar situações desafiadoras de emergência. De igual modo, estas dinâmicas corroboram na avaliação e no aprimoramento dos protocolos de resposta às emergências, os quais identificam as áreas demandantes do sistema de saúde local e, sobretudo, auxiliam numa ação ágil em desastres reais”, disse o professor.