Cadastro positivo do transporte

Projeto de lei visa instituir um banco de dados com o histórico de motoristas profissionais, apresentando informações como conduta e obrigações cumpridas

Capa / 18 de Dezembro de 2019 / 0 Comentários
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Em tempos de informação a um clique, uma proposta quer centralizar o histórico de todos os motoristas profissionais, independentemente da categoria de habilitação, por meio de um banco de dados. O Projeto de Lei (PL) 5.240/19 altera o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e abrange taxistas, caminhoneiros, motoristas de ônibus, de vans e de serviços de transporte por aplicativo.

O objetivo, segundo a deputada federal Christiane de Souza Yared (PL-PR), autora do texto, é criar uma espécie de cadastro positivo. O arquivo poderá conter informações de conduta e de obrigações cumpridas ou em andamento, contanto que elas sejam objetivas, claras, verdadeiras e de fácil compreensão, além de necessárias para se avaliar a situação do cadastrado.

“O presente projeto de lei tem por objetivo manter a rigidez no controle relativo ao processo de habilitação e de renovação da Carteira Nacional de Habilitação [CNH] para motoristas profissionais. Mais do que isso, a intenção principal é incentivar as boas práticas no que tange à condução de veículos utilizados como instrumento de trabalho. Nesse sentido, é criado um verdadeiro cadastro positivo, a ser autorizado pelo condutor, com vistas a desenvolver um histórico de seu perfil enquanto trabalhador do trânsito”, diz um trecho da proposta.

 

Incentivo

Segundo a matéria, as boas práticas e o histórico positivo de atuação dos motoristas garantirão benefícios e deduções na pontuação pelas infrações eventualmente cometidas. A proposta determina ainda que o profissional que se submeter espontaneamente ao exame toxicológico em um prazo inferior ao estipulado poderá ter uma redução na pontuação da CNH – na proporção de dez pontos a cada seis meses e de cinco pontos a cada ano de realização do teste – e desconto no Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).

Outro item do PL 5.240/19 altera as regras para a concessão e a renovação da habilitação para as categorias C, D e E. Hoje, os condutores são obrigados a se submeter periodicamente a exames toxicólogos – no momento da concessão/renovação da CNH e na metade do período de validade do documento.

Christiane Yared afirmou, durante a apresentação do projeto no Plenário, que essas mudanças visam contribuir para a redução do índice de ocorrências envolvendo motoristas profissionais.

“Os acidentes de trânsito ainda são um problema na sociedade e na saúde pública do Brasil. Ao se selecionar um profissional que tem um bom histórico de atuação, há uma garantia de mais segurança. Além disso, o motorista com a conduta adequada sai na frente nos processos seletivos, tendo maior empregabilidade. Nesse sentido, a iniciativa de criar o banco de dados é positiva”, reitera o especialista em segurança pública e privada Guelfo Pescuma Junior.

A Entrevias tentou diversas vezes conversar com a deputada Christiane Yared sobre o PL 5.240/19, mas, até o fechamento desta edição, não havia tido um retorno.

Privacidade

De acordo com o projeto de lei, a abertura de cadastro requer a autorização prévia e expressa do motorista profissional. “Após sua inserção, a anotação de informação em um banco de dados independe de autorização e de comunicação ao cadastrado. As fontes ficam autorizadas, nas condições estabelecidas neste Código, a fornecer ao banco de dados as informações necessárias à formação do histórico dos cadastrados”, estabelece o texto.

Caberá ao órgão máximo executivo de trânsito da União garantir sistemas seguros de consulta para fornecer aos consulentes as informações de adimplemento do cadastrado, mantendo o sigilo nas operações e nos serviços prestados.

A matéria define também que a quebra de sigilo e o compartilhamento irregular dos dados constituem crimes e submeterão os responsáveis à pena de reclusão de um a quatro anos e multa.

Este, sem dúvida, é um dos principais pontos a serem observados no projeto: a privacidade. A partir de 2020, entrará em vigor a Lei 13.709/18, também chamada de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ela estabelece regras de coleta e de tratamento de informações de pessoas, de empresas e de instituições públicas; direitos de titulares de dados; responsabilidade de quem processa os registros; estruturas e formas de fiscalização; e eventuais reparos em casos de abusos.

De acordo com a LGPD, os dados pessoais são informações que podem identificar alguém, e, por isso, foi criada a categoria “dado sensível”, que reúne informações sobre origem racial ou étnica, convicções religiosas, opiniões políticas, saúde ou vida sexual. Registros como esses passam a ter um nível maior de proteção, a fim de se evitarem formas de discriminação.

Com esse princípio, espera-se que os dados não sejam usados como elementos de barganha. Por exemplo: se uma empresa que oferece treinamentos a motoristas profissionais consegue informações sobre o comportamento desses condutores, ela pode usá-las para encarecer os serviços.

A lei prevê uma série de obrigações, como a garantia da segurança dessas informações e a notificação do titular em caso de um incidente de segurança. A norma permite a reutilização dos dados por empresas ou órgãos públicos em caso de legítimo interesse, embora essa hipótese não tenha sido detalhada, permanecendo como um dos pontos em aberto da norma.

Do outro lado, o titular ganhou uma série de direitos. Ele poderá, por exemplo, solicitar os dados que a empresa tem sobre ele, a quem foram repassados (em situações como a de reutilização por legítimo interesse) e para qual finalidade. Caso os registros estejam incorretos, ele poderá cobrar a correção. Em determinados casos, o cadastrado terá o direito de se opor a um tratamento. A lei também permitirá a revisão de decisões automatizadas tomadas com base no tratamento de dados (como as notas de crédito ou os perfis de consumo).

Contexto

O PL 5.240/19 tramita na Câmara dos Deputados. A matéria ainda será analisada pelas comissões de Viação e Transportes, de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois, ela seguirá para o Plenário.

O objeto desse projeto, no entanto, não é novidade. Diversas empresas – sobretudo seguradoras – já possuem uma gama de informações. “O motorista pode perceber que, mesmo mudando de operadora de seguro, o seu histórico é analisado. Isso acontece porque essas empresas têm acesso às mesmas fontes”, explica Pescuma Junior.

Além disso, as seguradoras no Brasil começam a usar um aplicativo que monitora o modo como os motoristas dirigem para poderem mensurar riscos e, consequentemente, o preço das apólices de seguros de automóveis. O aplicativo no celular, de instalação voluntária, inclui um sistema de telemetria que se conecta ao veículo para mostrar informações sobre o perfil da condução (velocidade, frenagem, uso do celular ao volante) e os horários mais frequentes de utilização do veículo. A partir desses dados, a ferramenta aplica uma pontuação pela qual se mede o nível de risco de colisão ou de sinistro.

O argumento é que esse sistema também pode ser usado como uma espécie de cadastro positivo do motorista. Se ele tiver uma boa avaliação, poderá receber em troca a oferta de apólices mais baratas.

Há ainda empresas que oferecem o serviço de consulta ao histórico profissional, especialmente no transporte de cargas. As organizações que trabalham com o gerenciamento de riscos mantêm um banco de dados que contempla informações técnicas sobre veículos, motoristas, ajudantes e terceirizados. São cadastros para avaliar uma série de fatores, entre eles a validade da documentação, a responsabilidade fiscal e legal e o perfil comportamental.

No site da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), também é possível acessar dados de motoristas especializados no transporte rodoviário de passageiros. São informações como datas de admissão na empresa, de vencimento das certidões de distribuição criminal estadual e federal, bem como  a situação do profissional no cadastro da ANTT.

Experiência internacional

Enquanto o Brasil caminha para reunir em um único ambiente as informações de motoristas profissionais, os Estados Unidos já utilizam ferramentas de reconhecimento facial em um banco que contém dados dos condutores. As autoridades norte-americanas regularmente recorrem aos Departments of Motors Vehicles (DMVs) – equivalentes aos departamentos estaduais de trânsito no Brasil (os Detrans) – para analisar fotos de carteiras, independentemente de o indivíduo ter sido acusado de um crime.

Alguns Estados do país caminham na contramão da invasão de privacidade, especialmente de imigrantes. Recentemente, o governador da Califórnia, Gavin Newsom, sancionou uma lei para impedir que o Serviço de Imigração e Controle de Alfândegas (ICE) dos Estados Unidos tenha acesso ao banco de dados do DMV, em um esforço para evitar a deportação de imigrantes que buscam o direito de dirigir legalmente no Estado.

A Lei AB 1.747, de autoria da parlamentar Lorena Gonzalez, entrará em vigor em 1º de janeiro de 2020 e permitirá acesso ao banco de DMV apenas quando houver questões criminais. A mudança na legislação ainda terá uma segunda fase, com início previsto para 1º de julho do próximo ano, quando passará a exigir uma justificativa com base em processo criminal para acessar o Sistema de Telecomunicações da Polícia da Califórnia, auditado pela Procuradoria Geral.

Nesse Estado, que fica no Oeste do país, a Lei AB 60 autoriza a emissão de carteira de motorista para imigrantes indocumentados pelo DMV. O programa existe desde 2015 e já disponibilizou mais de 1 milhão de habilitações sem exigir provas do status imigratório legal no país nem da cidadania norte-americana.

Atualmente, além da Califórnia, o Distrito de Columbia e mais 11 Estados permitem que imigrantes indocumentados tenham acesso ao documento de habilitação nos Estados Unidos: Colorado, Connecticut, Delaware, Havaí, Illinois, Maryland, Nevada, Novo México, Utah, Vermont e Washington. Em Nova York, o benefício entrou em vigor recentemente.

Rigor

O que todos os Estados norte-americanos têm em comum é o rigor na segurança no trânsito, garantido por meio do monitoramento do motorista e da aplicação das devidas penalidades. Cesar Simões é brasileiro e atua como transportador em Orlando e em Miami, na Flórida, há mais de 15 anos. Ele conta que o histórico do condutor fica centralizado e arquivado durante 75 anos, e o acesso é público.

“Um dos pilares da sociedade norte-americana é o seguro. Toda prestação de serviço deve ser, obrigatoriamente, segurada. Assim, para trabalhar como transportador, é fundamental ter o seguro de uma empresa privada. Esse é um fator importante: por ser responsável pelo serviço, a seguradora faz uma criteriosa análise do perfil do contratante. Se ele tiver bom histórico de comportamento no trânsito, são oferecidos bônus. Em caso contrário, não o admitem em sua carteira de clientes”, diz o transportador.

Simões conta que uma única multa de excesso de velocidade é motivo de recusa do motorista pela seguradora e que a cada ocorrência no prontuário são somados pontos, de acordo com a periculosidade da infração. “Quanto mais pontos, menor sua empregabilidade. Todos os aspectos no trabalho do transportador são observados – como luz queimada, ausência de manutenção do caminhão, condições dos pneus – e registrados em um cadastro único”, explica o profissional.

Alerta para o bom comportamento

Na Europa, estudos realizados com motoristas na Dinamarca, na Espanha e na Itália mostraram que o sistema de pontos na carteira de habilitação muda o comportamento dos condutores e, segundo estimativas dos pesquisadores, contribui para a queda nos números de infrações, de lesões e de mortalidade no trânsito.

Trabalhos científicos têm mostrado a eficácia desse modelo para conter a violência. Adotado em 2003, na região de Veneto, na Itália, o sistema de pontos foi seguido por um aumento de 51,8% no uso do cinto de segurança entre os condutores, de 42,3% entre os passageiros da frente e de 120% entre os do banco de trás. Os dados são de um estudo publicado no “Journal of Epidemiology & Community Health”, em 2007. Após a introdução do sistema, houve um recuo de 18% nas mortes e de 19% nas lesões, conforme apontado pela pesquisa.

Já com a reforma que introduziu o sistema de pontos em Copenhague, na Dinamarca, os motoristas reduziram a frequência de infrações de trânsito em até 30%. A medida também levou à redução de até 20% na probabilidade de os condutores cometerem violação de trânsito. A pesquisa, de 2014, foi realizada pelo Departamento de Economia da Universidade de Copenhague.

De acordo com o trabalho, enquanto estudos anteriores sugeriam que o efeito das multas dependia do nível socioeconômico do motorista, “os resultados da pesquisa de 2014 mostram que as penalidades não monetárias baseadas em pontos afetam mesmo aqueles com alta renda e riqueza”, analisaram os pesquisadores.

Outro estudo avaliou o efeito do sistema de pontuação sobre 29.113 mortes ocorridas em acidentes de trânsito entre 2000 e 2007 na Espanha. O modelo foi introduzido em 2004, e o levantamento considerou os cenários anterior e posterior à implantação da medida. Estima-se que 618 pessoas teriam morrido em acidentes nos 18 meses seguintes caso o sistema não estivesse em vigor.

Variações

O sistema de pontuação na habilitação varia de país para país – e até entre regiões, como acontece nos Estados Unidos e no Canadá. Em Nova York, se o condutor perder 11 pontos em menos de um ano, ele terá a licença para dirigir suspensa. Mas, até isso acontecer, ele também poderá sofrer outras sanções. Com seis ou mais pontos em 18 meses, é preciso pagar uma taxa.

O sistema alemão é um dos mais rigorosos: se atingir oito pontos no período de dois anos e meio, o motorista terá a licença retida. O excesso de velocidade poderá fazer o infrator perder dois pontos; não parar antes da faixa para pedestres ou utilizar o celular na direção poderá resultar no desconto de um ponto. Segundo especialistas, porém, comparações internacionais devem levar em conta múltiplos fatores que diferenciam o trânsito de um país para o outro, como o peso de cada infração e a condição das vias.

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