Ciclo vicioso
Obras que não saem do papel, infraestrutura precária e cenário econômico adverso impactam de forma cruel o transporte rodoviário de cargas, acarretando redução da atividade, desemprego e prejuízos
A- A A+A recente decisão do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) de licitar novamente a duplicação da BR-381 vai na contramão da atividade do transporte rodoviário de cargas. Três anos após a esperada iniciativa ter, pelo menos a princípio, saído do papel, a obra praticamente não avançou, e, agora, grande parte dos projetos será revista, sendo que muitos trechos voltarão à estaca zero.
Não há previsão de concretização do plano inicial, que chegou a ser licitado e previa a duplicação entre Belo Horizonte e Governador Valadares. A intenção neste ano, segundo o Dnit, é preservar as intervenções realizadas para evitar retrabalho.
Ainda de acordo com o departamento, foi descartada a possibilidade de criação da variante Santa Bárbara, uma opção de trajeto para desafogar a rodovia entre Itabira e Nova Era. A construção foi rejeitada por causa de entraves financeiros, pois o custo previsto para a obra, por transpor áreas de proteção ambiental e plantas de mineração, é de cerca de R$ 8 bilhões. Para 2016, está previsto o recapeamento do trecho entre Belo Horizonte e Ipatinga, onde a última intervenção estrutural foi há 12 anos. Também será implantado um sistema de sinalização horizontal e vertical.
Impactos
Nesse sentido, os projetos dos lotes 4, 5 e 6 terão de ser refeitos. “O planejamento não será aproveitado na íntegra porque o volume de veículos que vai passar por ali não se adequa na rodovia da forma como é hoje”, diz o órgão. A expectativa é realizar uma nova licitação para esses três lotes ainda neste ano.
Com o atual valor disponível para as intervenções na 381 – R$ 60 milhões –, o Dnit continua com as obras do lote 7, a parte do viaduto e protegendo a terraplanagem pronta. A proposta para o próximo ano é seguir com as ações do lote 7 e focar o lote 3.1. Esse cronograma visa executar o acesso aos túneis e a duplicação de um segmento que tem entre 20 e 30 km, além de dar continuidade à construção de um viaduto de 600 m próximo a Caeté e retomar as obras de duplicação onde já foi iniciada a terraplanagem.
Os lotes 1 e 2, que foram judicializados e estão sendo feitos pela Isolux – vencedora da licitação –, também estão indefinidos. A empresa quer mais tempo para executar as intervenções, e há a possibilidade de os contratos serem rescindidos. Caso isso ocorra, o Dnit pode vir a assumir a obra nesse trecho.
Cenário precário
Infelizmente, a ausência de investimento na BR-381 é mais um dos casos que compõem o vasto cenário de infraestrutura precária no Brasil. Segundo a Confederação Nacional de Transportes (CNT), 57,3% das rodovias apresentam deficiências no estado geral de conservação.
A infraestrutura adversa somada à crise econômica no Brasil impacta de forma cruel o transporte rodoviário de cargas. “Operamos muito na região Sudeste do país, mas é sabido o estado de não-conservação das estradas em diversas localidades. Especialmente em Minas Gerais, que possui uma extensa malha rodoviária, há décadas o governo estadual não acompanha as necessidades de uma infraestrutura segura e com trafegabilidade e sinalização decentes. Trabalhar nesse cenário é penoso. O custo do transporte aumenta em função de manutenções e consertos, e o valor não é repassado. O resultado é que as transportadoras estão definhando, operando no limite”, ressalta o diretor do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga do Estado de Minas Gerais (Setcemg), Ulisses Cruz.
A ausência de estrutura rodoviária adequada reduz a eficiência do transporte, compromete a segurança dos usuários e encarece em até 40% o custo do serviço. Além disso, a sobrecarga da rodovia produz lentidão, buracos e risco de acidentes, gerando prejuízo para os transportadores. “Uma estrutura que já era ruim, com a paralisação de investimentos e obras, vai ficar caótica”, critica Ulisses Cruz. “Com as obras paradas, ou seja, com bloqueios na pista, mas sem avanço, nos restou mais tempo de viagem e mais consumo de combustível, de pneus e de componentes de suspensão”, acrescenta.
O presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto), Carlos Roesel, reforça a correlação da infraestrutura com a atividade do transporte. “O modal rodoviário é um dos principais setores responsáveis pelo desenvolvimento do país. Além de promover a circulação de bens e produtos, gera emprego e renda. Contudo, não é priorizado nas políticas públicas: faltam investimento em estrutura viária e incentivos para o desempenho adequado das empresas”.
Na carne
Paralelamente, ele ressalta o atual contexto: a diminuição da atividade econômica de forma geral e, consequentemente, uma menor circulação de bens e serviços, ou seja, atuação mais restrita do transporte. “Os dados de desemprego, que forma um ciclo vicioso, nos assustam”. A estimativa, segundo o diretor do Setcemg, é que entre 12 e 15 mil caminhões estejam parados em Minas Gerais, sendo que, desde o início deste ano, o número de demissões vem aumentando 35% em média. Ele completa que, se forem considerados dados de transporte da indústria e do comércio que têm frota própria, a quantidade ficará ainda maior.
O Ministério dos Transportes aponta 25,3 mil postos de trabalho nas empresas de transporte e logística somente no primeiro bimestre de 2016. O número representa um terço dos resultados de 2015, quando 76,4 mil pessoas perderam suas vagas no setor.
Investir é preciso
Sem dúvida, esse quadro é reflexo imediato da redução de investimentos em infraestrutura ao longo das últimas décadas. Para se ter ideia, em 1975, o percentual do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil era de 1,8% e, em 2015, caiu para 0,19%.
Dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) no início do ano já apontavam a diminuição em 11,8% dos valores destinados pelo governo federal para investimentos em infraestrutura de transporte pelo Projeto de Lei Orçamentária de 2016, queda decorrente dos cortes orçamentários definidos para se promover o ajuste fiscal.
O Relatório da Competitividade Global 2015-2016: Posição da Qualidade Geral de Infraestrutura mostra que o Brasil ocupa a 123ª posição entre 140 países analisados. O estudo informa que o Estado brasileiro deveria investir 4% do PIB por ano em infraestrutura, e, para isso, seriam necessários recursos na ordem de R$ 240 bilhões.
O presidente do Sindicato de Transportes de Cargas do Centro-Oeste Mineiro (Setcom), Raimundo Fernandes, reforçou a necessidade de investir em infraestrutura, como fator competitivo para atração de negócios. “Temos no Brasil grandes polos transportadores, que têm importância estratégica para a economia nacional. Por isso, é fundamental contarmos com melhores condições de tráfego.”
A origem
A ausência de investimento está na contramão da importância do setor. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, o modal rodoviário respondeu por mais de 60% do total transportado no país. A origem dessa dependência está nos anos 1960 e 1970 do século passado, quando a malha rodoviária federal pavimentada cresceu rapidamente, passando de 8.675 km em 1960 para 47.487 km em 1980. A partir de então, o crescimento foi lento, alcançando-se, em 2000, 56.097 km. Isso ocorreu porque a malha rodoviária brasileira foi construída por meio de recursos arrecadados pela União – imposto sobre combustíveis e lubrificantes, imposto incidente sobre a propriedade de veículos e outros – e destinados à implementação do Plano Rodoviário Nacional e ao auxílio financeiro aos Estados na execução de investimentos rodoviários.
Todavia, esse arranjo passou a perder força depois de 1974, quando parte dos recursos direcionados ao setor começou a contemplar outras prioridades. Seu término se deu com a Constituição Federal (CF) de 1988, que proibiu a vinculação de receita de impostos a órgãos, fundos ou despesas predeterminadas. “Desde então, a infraestrutura rodoviária depende quase exclusivamente de recursos ordinários da União. Com a crise fiscal dos governos estaduais e federal, essa verba passou a ser disputada por muitas áreas, e, apesar de receber em média 58% dos recursos destinados ao transporte de 2002 a 2009, o sistema rodoviário foi contemplado com baixos níveis de investimentos públicos, insuficientes até para sua manutenção. Assim, os parcos recursos legados à manutenção e à recuperação das estradas somados à utilização permanente e em grande escala desse modal contribuíram para a deterioração das vias, que, hoje, apresentam uma demanda de mais de R$ 180 bilhões em obras” segundo a publicação “Infraestrutura Econômica no Brasil: diagnósticos e perspectivas para 2025”.
Caminhos privados
A queda no repasse de recursos federais para investimento em infraestrutura rodoviária ao longo das últimas décadas levou o governo federal a buscar, a partir de 1995, o apoio da iniciativa privada através do Programa de Concessão de Rodovias Federais. A escolha é feita por licitação, vencendo a empresa com a menor tarifa de pedágio. Através do programa, já passaram para a administração privada quase 15 mil km de estradas, com as concessionárias tendo investido até 2009 em torno de R$ 20 bilhões em recuperação, ampliação e melhoria dos trechos concedidos.
Em contrapartida aos investimentos, o governo permite que as concessionárias explorem os pedágios nas rodovias. Apenas em 2009, a receita com pedágio no Brasil foi de R$ 8,3 bilhões, um aumento de 23% em relação ao ano anterior. Nesse período, passaram 1,1 bilhão de veículos pelos quase 15 mil km de estradas pedagiadas, sendo mais de 270 mil veículos pesados, como caminhões e ônibus.
Outra forma utilizada pelo governo para captar recursos são as parcerias público-privadas (PPp), opção que vem sendo empregada em rodovias com pouca ou nenhuma rentabilidade econômica. Nesse caso, geralmente, a PPP é feita por concessão patrocinada, na qual o usuário paga uma tarifa e o governo complementa a receita para que o empreendimento se torne viável economicamente.
No mundo
De acordo com o estudo “Rodovias Brasileiras: gargalos, investimentos, concessões e preocupações com o futuro”, o Brasil possui cerca de 9% de suas estradas nas mãos da iniciativa privada, um percentual bem superior à média mundial. Conforme pesquisas realizadas pela Associação Nacional de Transportes de Cargas, a média mundial é de 2%.
A experiência internacional também difere significativamente da brasileira à medida que, na maioria dos países, as concessões se destinaram à construção de autopistas.
Dessa maneira, o programa de concessões rodoviárias no Brasil visou à transferência de ativos do setor público para o privado, enquanto que, na maior parte dos países, trata-se de um programa de criação de ativos. Possivelmente, por ser mais fácil e rápido transferir em vez de construir uma rodovia, o Brasil fez mais concessões do que os demais países. “Essa diferença entre o programa de concessão brasileiro e os internacionais mostra que, aqui, os investimentos realizados pelo setor privado foram muito inferiores aos feitos no exterior. Esse fato é importante e indica que não é um procedimento aceitável comparar o valor da tarifa de pedágio brasileira com o da de outros países. Naturalmente, a tarifa nacional de pedágio, independentemente do fluxo de veículos, tem de ser significativamente menor do que a praticada em outros lugares, onde as concessionárias tiveram de investir na construção das autoestradas. Assim, seria uma comparação de dois produtos diferentes. Uma coisa é o preço para utilizar uma autopista, como as construídas no exterior, outra é o preço para trafegar em rodovias de pistas simples, como na maioria das concessões brasileiras, que transferiram para a iniciativa privada 8.345 km de rodovias de pistas de mão dupla”, distingue o estudo.
Outra característica da Lei de Concessões brasileira é que ela não estabelece a obrigatoriedade de o poder público (concedente) manter trajetos ou vias alternativas livres de pedágio como condição prévia para a outorga de concessões, embora isso seja observado em outras nações, como no México, que, por força de lei, “mantém estradas alternativas, sem pedágio, na mesma rota, para os usuários que preferirem recorrer aos trechos livres para os seus deslocamentos, embora trafeguem por estradas de pistas simples em vez de em autoestradas”.
A principal conclusão do estudo é que a rodovia concedida recupera sua condição operacional, mas sua estrutura, em termos de capacidade, basicamente, não se altera pelo período da concessão. Assim, no curto prazo, o programa de concessão brasileiro deve apresentar uma resposta positiva, uma vez que a rodovia em bom estado operacional atenderá à demanda de transporte. Porém, considerando-se os 25 anos da concessão e admitindo-se a continuidade do processo de expansão da economia – principalmente o crescimento das safras de grãos, que dobrou nos últimos 15 anos e pode dobrar novamente em período de tempo equivalente –, espera-se que as estradas concedidas tenham dificuldade em atender à demanda.
Nesse sentido, é essencial aperfeiçoar o modelo de concessão de rodovias adotado pelo governo federal para suprir o aumento da demanda, que pode ocorrer no período da concessão. Uma sugestão é que se altere o critério de escolha do vencedor da licitação. Atualmente, ganha a licitação a empresa que oferece a menor tarifa de pedágio. Sugere-se substituir esse critério pelo modelo chileno: venceria o proponente que ofertasse o menor valor financeiro para cumprir todas as obrigações contratuais previstas no edital.
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