Covardia nas estradas
Motorista é flagrado passando ônibus em cima de uma sucuri. Segundo estatísticas, mais de 15 animais morrem nas rodovias brasileiras a cada segundo. Contudo, na maioria das vezes, as mortes são acidentais.
A- A A+O vídeo do atropelamento intencional de uma sucuri de aproximadamente 5 m na BR-364, em Abunã, no distrito de Porto Velho (RO), acabou viralizando na internet recentemente. Nas imagens compartilhadas em várias redes sociais, é possível ver o motorista de um ônibus da empresa Ipe Transporte fazendo manobras com o intuito de matar a serpente.
A filmagem mostra o animal no meio da estrada, a poucos metros do veículo, que está desalinhado na pista. Pouco depois, o ônibus, de ré, passa por cima da cobra, que é imediatamente esmagada pelas rodas traseiras. Em seguida, o motorista atinge novamente o animal, desta vez com as rodas dianteiras do veículo. O vídeo termina com o ônibus alinhado e a sucuri morta na via.
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A Polícia Ambiental disse que uma patrulha esteve no local para verificar a situação e que a empresa que fazia o transporte de passageiros foi notificada a prestar esclarecimentos à Polícia Civil. Já o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informou que aplicou uma multa ao infrator com base no Artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), que prevê pena de seis meses a um ano e multa a quem mata animal silvestre. Um processo administrativo também será aberto no instituto para apurar a infração, e o Ministério Público será comunicado para verificar a responsabilidade criminal.
Em nota, a empresa afirmou que vai demitir o motorista, já que a atitude dele não condiz com a política da Ipe Transporte.
Luto nas estradas
A cena de crueldade e covardia registrada em Rondônia acendeu o alerta para um cenário desolador: mais de 15 animais morrem nas estradas brasileiras a cada segundo. Diariamente, no entanto, o total pode ser superior a 1,3 milhão, e, ao fim de um ano, até 475 milhões de bichos selvagens são atropelados no Brasil.
Diretora da ViaFAUNA, Fernanda Delborgo Abra, acompanha situação de antas. (Ao lado) Capivara é vista atravessando a via na frente de um veículo
Os dados são do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE), ligado à Universidade Federal de Lavras (Ufla), no Sul de Minas Gerais, e se baseiam em um estudo que considerou 14 artigos científicos publicados em diferentes revistas brasileiras, referentes a vários biomas. A partir desse levantamento, foi calculada uma taxa de atropelamento médio no país. Como a maioria dos trabalhos brasileiros é realizada em rodovias federais de pistas simples, a taxa calculada foi usada como referência para esse tipo de via. Rodovias estaduais e municipais, assim como estradas de terra, tiveram taxas de atropelamento menores.
O alto número se justifica pelo fato de a maioria dos animais mortos por atropelamento ser formada por pequenos vertebrados, como sapos, aves e cobras – é uma estimativa de aproximadamente 430 milhões de mortes anuais. O restante dos 45 milhões se divide em 40 milhões de bichos de médio porte (gambás, lebres, macacos) e 5 milhões de grande porte (onça-parda, lobo-guará, onça-pintada, anta, capivara).
A assessoria de imprensa do Ibama informou que já existe um mapeamento advindo dos Programas de Monitoramento e de Mitigação dos Atropelamentos de Fauna de empreendimentos licenciados no órgão ambiental. “No entanto, ainda não há uma compilação nem uma análise sinérgica desses dados”, informou o instituto.
O principal impacto dos atropelamentos e das mortes de animais nas rodovias é o risco de extinção de algumas espécies, que também podem perder o habitat. Além disso, há um rompimento nos ciclos naturais, tanto na cadeia alimentar como na reprodutiva e na biológica, diminuindo a biodiversidade em áreas com altos índices de atropelamentos.
Responsabilidades
O atropelamento intencional da fauna pode ser enquadrado em ao menos dois artigos da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998). Se a prática não causar a morte do animal, mas ficar evidenciado que houve maus-tratos, ferimentos ou mutilações, ela poderá ser enquadrada no Artigo 32, que prevê a aplicação de multas de R$ 500 a R$ 3.000 por indivíduo. Em caso de morte, o ato pode ser enquadrado no Artigo 29, referente a matar e caçar espécimes da fauna silvestre, com multas que vão de R$ 500 a R$ 5.000, para animais ameaçados de extinção.
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O coordenador de Operações de Fiscalização do Ibama, Hugo Ferreira Netto Loss, ressalta a dificuldade de monitorar os atropelamentos de animais. “Normalmente, eles acontecem em locais ermos. Por isso, contamos com a parceria das Polícias Militar e Rodoviária Federal e das concessionárias das rodovias”. Ele completa dizendo que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes é o órgão responsável pelas construções e pelas ampliações de estradas e atua em parceria com o instituto para contemplar meios para minorar os acidentes com animais.
Segundo a assessoria de imprensa do Ibama, “a responsabilidade objetiva pelos atropelamentos no âmbito do licenciamento ambiental é do empreendedor responsável pela rodovia, que deve empregar os recursos necessários para a mitigação dos atropelamentos e demais impactos advindos da rodovia à fauna, ainda que isso acarrete aumento de tarifas de pedágio ou cobranças pelo uso da via à luz de outro princípio: usuário-pagador. Essa mitigação é atestada pela diminuição na taxa de atropelamentos das rodovias monitoradas”.
Caso isso não aconteça, o empreendedor deve elaborar medidas adicionais de diversas naturezas, desde campanhas educacionais, instalação de radares para controle de velocidade em trechos específicos da via até bloqueio emergencial do trânsito de animais com a instalação de barreiras que impeçam a travessia deles pela rodovia.
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Se os recursos necessários e determinados pelo órgão licenciador para reduzir os atropelamentos em seus empreendimentos não são empregados, aplicam-se sanções, em geral, administrativas e definidas pelo Decreto 6.514/2008 e/ou multa de R$ 5.000 a R$ 50 mil, dependendo da dimensão do dano causado e em conformidade com a gradação do impacto.
Também no âmbito do licenciamento ambiental, pode ser punido o empreendedor que fizer funcionarem obras ou serviços potencialmente poluidores, contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes, segundo o Artigo 59 da Lei de Crimes Ambientais. Por fim, o empreendedor, quando não instalar as mitigações exigidas no processo de licenciamento ambiental, poderá ser penalizado por ter o dever legal e não cumprir a obrigação de relevante interesse ambiental, conforme disposto no Artigo 68 da Lei 9.605. As sanções definidas no Decreto 6.514/2008, por não atenderem às exigências legais ou regulamentares, são multas de R$ 1.000 a R$ 1 milhão.
A diretora da ViaFAUNA Estudos Ambientais, Fernanda Delborgo Abra, enfatiza a obrigação de se cumprirem os ritos do licenciamento ambiental e de agir, até mesmo voluntariamente, na adoção de medidas de mitigação eficientes para a redução das colisões envolvendo animais.
“É altamente recomendável a contratação de empresa especializada na criação de planos de mitigação para a redução dos atropelamentos de fauna para a rodovia. O Brasil tem a quarta maior malha rodoviária do mundo e é o pais com a maior diversidade biológica do planeta. Uma vez que os empreendimentos rodoviários se tornarem mais sustentáveis – instalando passagens de fauna e cercamentos e também planejando melhor os empreendimentos, bem como as operações –, muitos animais poderão ser salvos. O empreendedor deve entender que, prevenindo as colisões, ele estará promovendo a conservação da biodiversidade, a segurança humana e terá um retorno econômico, pois menos colisões geram menos custos, de maneira geral, e diminuem as indenizações aos usuários”, garante Fernanda.
Caminhos
A diretora da ViaFAUNA explica que a presença das rodovias pode gerar um efeito barreira, que significa o não encorajamento dos animais a atravessarem a via. Por outro lado, se eles atravessarem, o tráfego de veículos pode causar a mortalidade direta de indivíduos.
“Nas rodovias sob concessão, as medidas mais utilizadas são as placas de sinalização de travessia de fauna, que não são eficientes para a redução dos atropelamentos. Entre as medidas mais eficazes vale citar a combinação de passagens inferiores de fauna com cercas, que diminui a morte de animais vertebrados terrestres em até 86%. Para os arborícolas [que vivem em árvores], as medidas mais recomendadas são as passagens superiores de fauna, ligando os fragmentos florestais cortados pela rodovia”, ressalta Fernanda.
Na Alemanha, onde estão as estradas mais ecologicamente corretas do planeta, as rodovias combinam cercas que impedem o acesso dos animais à pista com viadutos pelos quais eles podem atravessar sem terem de enfrentar os carros. Nos Everglades, imensa área de pântanos ao sul da Flórida, nos Estados Unidos, as rodovias de alta velocidade são suspensas nos trechos de maior concentração da fauna. Em outras regiões, vizinhas de parques nacionais, usam-se até aparelhos que emitem ondas ultrassônicas para afastar os animais das vias.
Outra solução adotada no mundo inteiro é estabelecer limites rigorosos de velocidade e punir motoristas infratores. Especialistas em trânsito apontam a imprudência, o desrespeito à sinalização e o excesso de velocidade como as principais causas de acidentes envolvendo animais, sejam eles de pequeno, médio ou grande porte.
Parceiros da fauna
Ao se perceberem animais na pista ou próximo a ela, o correto é reduzir a velocidade ou mesmo parar. Não se deve acionar a buzina para espantá-los. É bom ligar os faróis e o pisca-alerta para chamar a atenção de outros motoristas. Os animais, quando assustados, reagem de maneira imprevisível. Por isso, não é aconselhável acreditar que, ao verem o veículo, eles vão fugir para a frente.
O Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas, da Ufla, desenvolveu o aplicativo Urubu Mobile, que permite que os motoristas registrem fotos de atropelamentos de animais com o intuito de diminuir a recorrência desses incidentes e de auxiliar no planejamento de novas vias. Para utilizar o sistema, os interessados podem fazer o download no Google Play ou na App Store. Assim, quando se encontrar um animal silvestre atropelado, basta fazer uma fotografia para que a posição geográfica e a data sejam marcadas automaticamente.
“Os profissionais do transporte rodoviário também podem contribuir com ações educativas contra o atropelamento intencional de animais, cujas vítimas geralmente são as serpentes e outras espécies ligadas à superstição/folclore do azar e do mau agouro – como os tamanduás –, alvos de caminhoneiros em algumas regiões do país”, diz o Ibama.
Além da prevenção, os profissionais podem auxiliar na comunicação sobre a presença de animais nas rodovias com os gestores delas. Essa medida contribui para o registro de determinadas espécies em trechos específicos e, consequentemente, para a tomada de decisão sobre a instalação de estruturas que reduzam os impactos causados à fauna daquela região.
Quanto às ações do Ibama para diminuir os atropelamentos, o órgão garante que investe na qualificação dos programas ambientais e na regularização e na adaptação das rodovias com estruturas mitigadoras. “Há um enxugamento dos programas ambientais, qualificando a tomada de decisões quanto ao deslocamento de recursos de atividades com pouca contribuição para a mitigação – como os monitoramentos genéricos das populações faunísticas – para atividades relativas à mitigação efetiva, tais como instalação de estruturas (passagens de fauna), promoção de campanhas educativas e intensificação do monitoramento dos atropelamentos de fauna”.
Transporte sustentável
Entrevista com a bióloga, doutoranda em ecologia aplicada e diretora da ViaFAUNA Estudos Ambientais, Fernanda Delborgo Abra
Quais são os objetivos da ViaFAUNA?
O objetivo principal é ser uma consultoria ambiental que trabalha com o manejo da fauna em empreendimentos de transportes como rodovias, ferrovias e aeroportos tidos como referências no país. Nosso objetivo é salvar vidas humanas e de animais silvestres, prestando serviços inovadores e de altíssima qualidade. O Brasil pode ser referência mundial em transporte sustentável. Nós devemos buscar isso, pois é parte importante para manter uma de nossas maiores riquezas: a biodiversidade.
Como vocês atuam?
A ViaFAUNA é uma consultoria especializada em fauna, porém nosso carro-chefe é trabalhar no manejo dela em empreendimentos de transportes. Nós fazemos diversas análises com bancos de dados, estudos de paisagens e cruzamentos de informações para abordar os problemas por priorização e realizamos atividades em campo. Para um plano de redução de atropelamentos, por exemplo, em primeiro lugar, nós levantamos tudo que pode ser adaptado para que as recomendações do que deve ser feito e instalado venham em segundo plano. Nossa abordagem é sempre muito prática, e nossos produtos também visam a um custo-benefício positivo para nossos clientes. Ficamos muito felizes com os serviços realizados porque o feedback é sempre positivo.
Quais são os resultados?
Para as rodovias, um de nossos produtos é o Plano de Mitigação, uma análise muito completa do problema e de como atacá-lo. Nesse plano, recomendamos detalhadamente tudo o que o cliente deve fazer para reduzir as colisões com a fauna, desde a adoção de estruturas específicas, como passagens de animais e cercamento, até o aperfeiçoamento operacional do empreendimento. Atualmente, estamos trabalhando na análise da redução de atropelamentos de animais em uma rodovia específica do Estado de São Paulo. Houve uma queda muito significativa, e o estudo será divulgado em breve.
E os principais desafios?
Hoje, para a ViaFAUNA, nossos principais desafios são as mudanças culturais que devemos ter para os próximos anos sobre como planejar, instalar e operar rodovias e outros empreendimentos no Brasil contemplando os conflitos com a fauna. O administrador rodoviário deve ter em mente que reduzir atropelamentos também significa oferecer melhor transporte, mais segurança e melhor trafegabilidade aos usuários.
Quais são as perspectivas de atuação?
A ViaFAUNA já está presente em diversos Estados brasileiros, mas nossa expectativa é estar em todos os locais com projetos rodoviários, ferroviários e aeroportuários. Além das rodovias, as ferrovias e os aeroportos apresentam grandes problemas de manejo de fauna nas operações, e a ViaFAUNA tem corpo técnico para trabalhar nesses empreendimentos também, com uma abordagem própria e inovadora.
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