DESPREZO PELA VIDA

Manutenção da vegetação nas rodovias é ignorada pelos órgãos públicos, e transportadores são os principais prejudicados pelo descaso

Capa / 27 de Novembro de 2021 / 0 Comentários
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“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra (...)”

Um dos mais famosos poemas de Carlos Drummond de Andrade, “No Meio do Caminho” é uma obra-prima que se refere aos obstáculos que encontramos na vida e que podem nos impedir de seguir nosso percurso. No caso dos profissionais do transporte rodoviário de cargas, são encontrados, além de muitas “pedras”, inúmeros galhos e árvores, já que, não raramente, eles se deparam com trechos em que a vegetação avança sobre a pista. Esse cenário absurdo escancara o descaso dos órgãos públicos.

“Temos que priorizar o equilíbrio entre todos – ser humano, flora e fauna –, e, para isso, é necessário conservar o meio ambiente, por meio da gestão responsável da vegetação, e garantir o trânsito seguro nas estradas”, afirma a orientadora dos programas de pós-graduação em engenharia ambiental da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Soraya Giovanetti El-Deira.

No entanto, ao transitarmos pela BR-381 nas imediações de Caeté, na região Central de Minas Gerais, por exemplo, não encontramos essa harmonia. Além do traçado perigoso da rodovia, que em grande parte é formada por pistas simples e curvas acentuadas sem barreiras de proteção, os caminhoneiros são surpreendidos por árvores de grande porte invadindo a estrada, forçando-os inclusive a trafegar pela contramão.

“Os caminhões chegam a encostar na vegetação, colocando a vida dos motoristas em risco e danificando os veículos. Por isso, temos um projeto essencial para garantir a segurança nas vias por meio de podas responsáveis. Contudo, não conseguimos avançar com a proposta, uma vez que o apoio dos órgãos oficiais é mínimo. Ficamos praticamente sozinhos com a missão de administrar dezenas de trechos nos quais as árvores necessitam ser podadas”, critica o presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto/MG), Carlos Roesel.

Ele conta que, em função da lentidão do poder público na manutenção da vegetação próximo às rodovias, o Sintrauto/MG, há mais de 20 anos, vem buscando uma solução para minimizar o transtorno. “Por meio de parcerias, dois equipamentos fazem a poda das árvores por todo o Brasil. É um trabalho difícil, porque depende de licenças e do enfrentamento da burocracia em diversos órgãos, mesmo sendo um problema que, além do dano material, pode provocar até acidentes”, sublinha Roesel.

No caso da BR-381, a responsabilidade pelo manejo da vegetação é do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A Entrevias contatou a assessoria de imprensa da autarquia, mas, até o fechamento desta edição, não havia tido um retorno. A princípio, o técnico de Suporte de Infraestrutura do Núcleo de Comunicação do departamento em Minas Gerais, Everton Fernandes Martins, disse que “a rodovia é bastante extensa, e, por isso, tem que ser analisado cada caso específico”. Foram encaminhadas então fotos de trechos específicos (as mesmas que ilustram esta matéria), mas, mesmo assim, não tivemos uma resposta do Dnit.

Problemas estruturais

Na avaliação da professora Soraya, o atual contexto é resultado da ausência de planejamento estratégico da composição florestal das rodovias. “Não há dúvidas quanto aos protocolos e aos manuais elaborados pelos órgãos públicos para a ocupação da flora nesses ambientes. Todavia, a implementação das ações esbarra na burocracia e na ausência de celeridade para as soluções. O funcionalismo público tem seu tempo próprio. Durante 20 anos, fui gestora da minha empresa e entrei na universidade com o propósito de compartilhar o meu conhecimento de 40 anos em gestão ambiental. A velocidade institucional é completamente diferente no público e no privado. No caso das estradas, o transportador tem pressa, tem compromisso com a entrega, com o horário, com a necessidade das pessoas, mas o governo não tem essa sensibilidade na resolução”, frisa a orientadora.

Ainda de acordo com a especialista, a diretriz para cobertura vegetal nas rodovias deve respeitar o bioma (condição ecológica) da região e o traçado da pista, de forma a proporcionar uma experiência segura aos usuários. “Quando estamos em uma rodovia, se tem aclividade ou declividade, por exemplo, é necessário estabilizar essas áreas, e, por isso, é preciso ter uma vegetação baixa, com gramíneas. O paisagismo não pode esconder as placas de trânsito nem prejudicar a visibilidade dos condutores, devendo garantir mais segurança às pessoas que circulam naquele ambiente”, salienta Soraya.

Atualmente, a maioria das estradas não possui um plano de arborização, abrindo brecha para que as espécies sejam plantadas e manejadas de maneira errada, sem que seja feito um estudo de caso que vise às mais apropriadas para o local e avalie critérios como o espaçamento adequado e a distância mínima de margem.

Perigo iminente

A ausência de planejamento e de poda da vegetação segue na contramão da segurança viária, gerando sérios riscos. Por outro lado, a conservação do verde facilita a visualização das placas de sinalização; diminui as chances de ocorrerem queimadas (por meio da redução da massa seca); facilita a infiltração da água, evitando o empoçamento na pista; e aumenta a proteção do solo, diminuindo a erosão.

Mas, na prática, conseguir autorizações para as podas – mesmo diante da evidente necessidade delas – não é uma tarefa fácil. “É muito burocrática a intervenção ambiental. Antigamente, ela era automática. Agora, é preciso solicitar, aguardar e, muitas vezes, ter a autorização indeferida mesmo assim. A vegetação passou a ser vista de forma estratégica e sistêmica devido ao seu papel fundamental de alimentar a fauna e fornecer sombra. Tem também a questão do custo, já que, em alguns locais, o pedido de intervenção é cobrado por espécime. Acima de três, é exigida a presença de um técnico para acompanhar o serviço. Ou seja, outro investimento. Tudo isso a cargo do tempo público”, explica o engenheiro ambiental Bruno Rodrigues, sócio-fundador da VerdiEra Sustentabilidade, empresa especializada em consultoria ambiental.

Para o presidente do Sintrauto/MG, se os órgãos oficiais e as vias sob concessão tivessem em suas pautas de manutenção permanente a poda de árvores, o resultado seria eficaz. “Como é um problema que afeta principalmente uma categoria de transporte – a dos cegonheiros –, a morosidade nos impede de sermos mais ágeis. São centenas de trechos dos mais diversos tipos de rodovias que precisam desse trabalho de manutenção com urgência para a liberação das licenças”, destaca Roesel.

Em Minas Gerais, essas medidas são reguladas pelo Decreto 47.749/2019. Na época em que a norma entrou em vigor, o diretor-geral do Instituto Estadual de Florestas (IEF), Antônio Malard, ressaltou que “o decreto traz mais segurança jurídica aos procedimentos de intervenção ambiental, modernização e celeridade às análises dos processos de autorização, mantendo a qualidade técnica”. Entre as principais regras, a mudança do prazo de validade para a intervenção ambiental desvinculada do licenciamento – que passou de dois anos, prorrogáveis por seis meses, para três anos, prorrogáveis por igual período – foi destacada, pois seu objetivo era estabelecer prazos fixos e propiciar melhorias no controle e nas podas de produtos florestais.

O gerente de Prevenção e Combate a Incêndios Florestais do IEF, Rodrigo Belo, afirma que a entidade tem um papel complementar junto ao Dnit e ao Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG), principalmente em função da sua expertise com incêndios florestais. “Fazemos a intervenção na vegetação quando há uma situação de queimada, que pode oferecer risco às rodovias. Trabalhamos com esses órgãos com o objetivo de apresentar ações para evitar incêndios florestais. Em maio, tivemos uma reunião conjunta, e essa foi a pauta”, revela o gerente.

Nesta época do ano, de clima quente e úmido, ocorre um pico de crescimento da vegetação. “Os órgãos responsáveis precisam implementar um modelo de gestão de risco. Ou seja, se tem uma árvore grande avançando em trechos, é preciso podar, tomar decisões. Além de prejudicarem a visibilidade e impedirem o trânsito de veículos altos, como os caminhões, os galhos e as folhas sobre a pista podem causar acidentes. Outra situação é a proliferação de insetos, como o serra-pau, que são capazes de roer a borda de uma árvore, provocando a queda dela”, alerta Bruno Rodrigues.

A Entrevias contatou a Superintendência da Polícia Rodoviária Federal em Minas Gerais (PRF/MG) e foi informada pelo porta-voz da corporação no Estado, inspetor Aristides Júnior, de que todas as situações de perigo que possam ser provocadas pelo avanço da vegetação sobre as pistas são comunicadas ao Dnit. Perguntado se atualmente tem conhecimento de algum trecho que precisa de poda, ele diz que desconhece. “A PRF tem foco na segurança do usuário da estrada. Nesse sentido, nosso objetivo é fiscalizar e orientar. Caso recebamos alguma notificação quanto ao avanço de árvores ou galhos, vamos ao local para verificar e comunicar ao órgão competente”, informa o inspetor.

De acordo com o presidente do Sintrauto/MG, a PRF é uma grande parceira, mas a solução do problema não depende dessa instância. “Se os cegonheiros identificarem a ocorrência de árvores nas rodovias, podem fazer uma reclamação ou registrar uma ocorrência nos postos rodoviários. Assim, em caso de acidente futuro, ficam resguardados. O problema é sério e atinge todos que percorrem nossa malha rodoviária, provocando risco de sinistros e danos materiais. As autoridades precisam se sensibilizar e atuar com eficiência e responsabilidade”, reivindica Roesel.

Ecossistema saudável

A fiscalização da vegetação nas faixas de domínio é essencial para garantir a segurança nas vias. Não está em debate nesta matéria o direito ao meio ambiente, que é indiscutivelmente fundamental para a qualidade de vida, mas é preciso implementar um ecossistema saudável, em que transportadores possam trabalhar em estradas seguras, e que garanta a sustentabilidade ambiental. Acidentes de trânsito decorrentes de choques contra árvores, por exemplo, geram grandes danos ambientais, situação que pode ser evitada com uma gestão pública eficiente e o emprego de tecnologia.

Para a execução de podas em rodovias, são usados equipamentos específicos que resguardam os veículos e trituram o material sem que haja a necessidade de retirada da palha do local. O ideal é realizar aproximadamente nove ciclos de poda durante o ano para evitar o excesso de massa seca e os consequentes incêndios florestais.

A tecnologia também contribui com a gestão da vegetação. No Estado de São Paulo, o inventário de árvores vem sendo feito por meio de drones. Esses equipamentos identificam as espécies e permitem o mapeamento de áreas a serem priorizadas para a gestão ambiental: poda, combate a pragas, manejos etc.

“No Canadá, a motosserra paira de helicóptero para podar as árvores. Ela tem seis serras circulares e vai passando para deixar a copa rente. É um país com tradição de muita tecnologia. No Brasil, o investimento é em gestão: implementação de processos, gerenciamento de pessoas, monitoramento das atividades e uso de tecnologia”, conclui Bruno Rodrigues.

 

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