GOLPE DO FRETE

Quadrilhas oferecem falsas prestações de serviços, com condições atrativas, para roubar caminhões. Motoristas ficam em cativeiro até veículo chegar a países que fazem fronteira com o Brasil.

Capa / 15 de Abril de 2019 / 0 Comentários
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Contrata-se frete em Embu das Artes, São Paulo, para Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, no valor de R$ 5.800 por tonelada mais pedágio. Procura-se transportador de Jundiaí (SP) para Corumbá (MS) para prestação de serviço no valor de R$ 6.000. Precisa-se urgentemente de transporte de Mairiporã (SP) para Corumbá (MS) – pagamento de R$ 5.300. O que há em comum nessas oportunidades de fretes é a intencionalidade: o objetivo é atrair transportadores para prestações de serviços que, em um primeiro momento, aparecem como vantajosas, mas são golpes para roubo de caminhões.

Relatório do rastreador de um dos caminhões roubados. Na cidade de Avaré (SP), foram apreendidos na rodovia três veículos no ano passado envolvidos no mesmo golpe de falsos fretes em Taboão da Serra (SP), a caminho do Paraguai.

“É uma modalidade de crime em que a quadrilha coloca o motorista como refém e atravessa a fronteira. Chegando lá, torna-se muito rara a recuperação, pois os veículos são adulterados, bem como circulam sem qualquer identificação”, explica o consultor em assuntos de segurança Gerson Oliveira, que atende a Associação Imperial Brasil.

Ele denuncia que, nos últimos meses, esses casos estão acontecendo com frequência em diversas localidades do país. Paralelamente, as quadrilhas se tornam mais profissionais. “O roubo é bem-articulado: os fretes são oferecidos em aplicativos e sites com condições interessantes de valor, distância e carga. Normalmente, quando o motorista chega à falsa empresa para fazer o transporte, ele é rendido e fica no cativeiro até o caminhão chegar ao destino”, afirma.


Caminhão de Rinópolis foi levado para o Paraguai.

O consultor pontua um aspecto importante: os ladrões não desligam os celulares nem o sistema de rastreamento. Ou seja: no monitoramento da falsa carga, o trajeto percorrido permanece o mesmo até se chegar à fronteira. Também para evitar suspeitas, os bandidos usam os aparelhos telefônicos via mensagens. Durante o roubo, é mantida a comunicação com a família e com a empresa sempre por meio de textos.

Segundo dados da Associação Nacional de Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), o roubo de cargas resultou em um prejuízo de R$ 1,5 bilhão em 2018 em todo o país, e, somado a ele, estão mais R$ 1 bilhão de prejuízos causados em casos de veículos roubados e que não são recuperados. A informação foi fornecida pelo coronel Paulo Roberto de Souza, assessor de segurança da NTC e do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo (Setcesp).


Problema nacional

A assessora jurídica do Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens (Sindicam de Ribeirão Preto), Lucélia Pelegrini, conta que a instituição teve um caso em Bebedouro (SP), em que o motorista foi deixado em Franca (SP) e os bandidos fugiram com o caminhão. “A entidade possui vários canais de comunicação com os transportadores através de redes sociais e aplicativos e no ponto de atendimento. A partir desses meios, fazemos a divulgação de todos os veículos roubados para que, se alguém encontrar ou verificar algum caminhão com as especificações informadas, denuncie para a Polícia Rodovia Federal ou para a Polícia Militar”, explica.

Ela ressalta que os bandidos se cadastram em sites de ofertas de frete, oferecem cargas falsas, e, quando o caminhoneiro chega ao local, é rendido e fica em cárcere privado até que eles desapareçam com o caminhão ou que os rastreadores parem de localizar o veículo.

Sempre alerta!

Gerson Oliveira enfatiza que é fundamental que familiares e colegas de trabalho sempre observem o comportamento dos transportadores durante as viagens. “Sabemos que atender ao celular no trânsito é proibido, mas é importante combinar a rotina e os melhores horários para conversar. Durante a comunicação, verifique o tom de voz e o comportamento e, diante de qualquer desconfiança, acione a polícia”, diz.


Outra orientação serve para os transportadores: “em tempo de crise econômica, ficamos mais vulneráveis e aceitamos todo tipo de serviço. Contudo, é preciso ficar alerta. O ditado popular ‘Quando a esmola é demais, o santo desconfia’ cabe muito bem no mercado de fretes, pois existem indicadores que mostram o real valor na cobrança do serviço. Não há espaço para ilusão”, afirma Gerson.

Segundo ele, outro cuidado é a pessoa manter a calma se estiver como refém e nunca revidar. É sempre relevante lembrar que, independentemente do contexto, reagir a um roubo não é uma boa ideia. A maioria é feita à mão armada, em áreas controladas por facções criminosas e por grandes grupos”, orienta ele.


O consultor para assuntos de segurança conta que, recentemente, foi encontrado um caminhão próximo do cativeiro, abastecido e pronto para viajar para Ponta Porã (MS). Outro foi localizado um dia depois, em um posto de combustível em Presidente Epitácio, na estrada para Ponta Porã: “Na associação Imperial, instituição para a qual presto assessoria, foram levados dois caminhões, um para o Paraguai e outro para a Bolívia. Fizemos um alerta para os associados.”

Dificuldades na recuperação

Todos os dias, veículos roubados no Brasil cruzam as fronteiras dos países vizinhos e jamais são recuperados pelos proprietários. Um prejuízo imensurável. A Argentina e o Paraguai são as rotas preferidas das quadrilhas, porque é fácil atravessar a fronteira, e a fiscalização não é tão eficaz. Há denúncias de que os governos locais fazem vistas grossas, permitindo que carros roubados circulem livremente.

No momento em que o veículo é recuperado pelas polícias vizinhas, ocorrem ainda corrupção, extorsão e burocracia, segundo denúncias. Quando o carro é encontrado, a polícia brasileira é comunicada. Contudo, há informações de que o cidadão que tenta buscar acaba sendo cobrado em R$ 500.

Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – países-membro do Mercosul – são signatários do Acordo de Assunção sobre restituição de veículos automotores terrestres e embarcações que transpõem ilegalmente as fronteiras entre os Estados. O documento tem como objetivo a luta contra todas as formas da delinquência organizada, reduzindo o impacto negativo que os crimes têm em relação às pessoas, “assegurando uma rápida recuperação dos bens que lhe foram subtraídos sem os prejuízos que as demoras burocráticas acarretam”.

A legislação prevê que todo veículo ilegal com origem de país vizinho membro do Mercosul será interditado, desapossado ou sequestrado e posto à disposição da autoridade judicial ou aduaneira local. Nesses casos, o bem ficará disponível para a autoridade competente, sob custódia, sem direito a uso, exceto, para sua guarda.

O Acordo de Assunção diz que toda pessoa física ou jurídica que deseje reclamar a restituição de um veículo de sua propriedade, que foi roubado ou furtado, deve formular seu pedido à autoridade judicial do território em que esse se encontre, podendo fazê-lo diretamente ou por seu representante legal. Contudo, a reivindicação não poderá ser realizada após cinco anos contados a partir do dia seguinte em que foi efetuada a denúncia à autoridade competente do lugar onde se produziu o roubo ou o furto.

A demanda de restituição deverá ser apresentada com a seguinte documentação: título de propriedade do veículo ou cópia certificada; certificado de fabricação, documentação de saída da fábrica ao mercado, ou documento equivalente que acredite a titularidade do veículo; certificado de importação, fatura de compra e conhecimento de embarque, despacho de importação ou documento equivalente; constância da autoridade competente do país de origem na qual se radicou a denúncia do roubo ou do furto do veículo.

Recebida a demanda de restituição, o juiz competente do país, uma vez cumpridas as diligências correspondentes, decidirá por pronto sequestro, interdição ou desapossamento do veículo. Os procedimentos de tramitação deverão concluir-se num prazo máximo de 60 dias úteis. “A prova sobre os direitos que se invocarem se limitará aos documentos e corresponderá exclusivamente a quem demonstrar a posse ou o domínio do veículo. Depois da decisão judicial, o veículo deverá ser devolvido imediatamente para seu legítimo proprietário”, diz o acordo. 

Cenário desolador

Em 28 de fevereiro, a Polícia Nacional do Paraguai apreendeu uma carreta Scania com placa de Juscimeira (MT). O veículo estava em um depósito de desmanche juntamente com outros 29 caminhões que, na maioria, já haviam sido desmontados para a venda de peças na região de fronteira.

Estima-se que, apenas em 2018, quadrilhas especializadas em roubos de caminhões e cargas tenham gerado um prejuízo de R$ 1,57 bilhão ao Brasil, com mais de 13 mil ocorrências, segundo o Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo (Setcesp). O número vem crescendo desde 2009. Na época, o cálculo das perdas com os crimes cometidos nas estradas foi de R$ 900 milhões no país.

Esses números põem o Brasil entre os piores e mais inseguros países do mundo para se transportarem mercadorias. Segundo dados divulgados pelo Comitê de Transportes de Carga do Reino Unido, pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) e pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o Brasil está na sexta posição do ranking mundial de nacionalidades com o maior número de roubo a cargas do planeta, ficando atrás apenas de Síria, Líbia, Iêmen, Afeganistão e Sudão do Sul. Fora o Brasil, todos os demais países da lista passam por pobreza extrema ou guerras civis.

Entre as cargas mais visadas estão os eletrônicos, os alimentos, os combustíveis e os medicamentos – além do próprio caminhão, que, de maneira geral, é levado para desmanches ou passa a fronteira para países vizinhos, onde se tem muita dificuldade para a recuperação.

“As entidades da categoria apresentam para os políticos regionais, estaduais e federais a gravidade do que está acontecendo nas estradas e nos postos de combustíveis, onde o caminhoneiro se vê obrigado a parar para descansar sem segurança. Foi apresentado pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, que o governo federal terá uma atenção com a categoria e criará áreas de descanso em âmbito nacional para diminuir os roubos. Lutamos em defesa dos transportadores pela valorização da profissão e por condições dignas de trabalho”, ressalta Lucélia Pelegrini.

 

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