Justiça às associações de transportadores

Membros do Judiciário têm claro entendimento quanto à atuação dessas instituições na prevenção e na reparação de danos. Mais do que isso: percebem a diferença entre associações e seguradoras.

Capa / 28 de Julho de 2017 / 0 Comentários
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A atuação de associações conta com a chancela do Judiciário brasileiro. Membros de tribunais e de Ministérios Públicos manifestam claro entendimento das atribuições dessas instituições formadas por transportadores de cargas com o objetivo de criar fundo próprio de recursos destinados à prevenção e à reparação de danos ocasionados a seus veículos por furto, acidente, incêndio, entre outros motivos. E mais: têm claro entendimento de seu papel diferenciado em relação às seguradoras.
Recentemente, em maio, o desembargador federal Kassio Marques, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, relatou que, “apesar da semelhança com o seguro mercantil comercializado pelas operadoras usuais do mercado, o seguro mútuo não se confunde. Essa modalidade é caracterizada pelo rateio de despesas entre os associados, apuradas no mês anterior, e proporcional às quotas existentes, com o limite máximo de valor a ser indenizado. É hipótese de contrato pluralista, orientado pela autogestão, em que todos os associados assumem o risco, sendo feita, entre eles, a divisão dos prejuízos efetivamente caracterizados”.
O desembargador foi relator de apelação cível em que a 6ª Turma do TRF da 1ª Região – Brasília – reconhece que a atividade de associações se difere das realizadas por uma seguradora, além de elas não guardarem a mesma natureza jurídica. 
A subprocuradora geral da República Denise Vinci Tulio também emitiu parecer declarando que as associações não se caracterizam pela venda de seguros, e, sim, pela relação de cooperação mútua. Assim, não prospera o argumento de prática ilegal de venda de apólice defendida pela Superintendência de Seguros Privados (Susep).
“A avaliação do Judiciário corrobora a importância das associações de transporte para o setor. Mostra que a Justiça reconhece a associação como uma solução para contribuir para a atuação dos transportadores em um mercado que enfrenta diversas adversidades e que seu trabalho está de acordo com a legalidade”, ressalta o presidente da Tchê Benefícios, Gelson Susin.

LEGALIDADE
As decisões judiciais pontuam que as associações atuam de acordo com os preceitos legais e remetem ao Projeto de Lei 356/2012, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS). Essa matéria altera o artigo 53 do Código Civil para permitir a organização dos transportadores de cargas se organizarem em associações de direitos e obrigações recíprocas para criar fundo próprio exclusivamente destinado à prevenção e à reparação de danos ocasionados a seus veículos por furto, acidente, incêndio, entre outros motivos.
"O preço de seguros para veículos de carga é impeditivo para os caminhoneiros autônomos", afirmou o senador.
A implementação desse projeto de lei é uma das principais frentes de atuação da Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat). Desde 2012, a diretoria da instituição trabalha junto a parlamentares a fim de sensibilizá-los quanto à importância de associações para garantir a sustentabilidade do setor.   
A Fenacat lançou como estratégia a articulação dos dois projetos – um no Senado e outro na Câmara dos Deputados – para que ambos caminhassem nas duas Casas, de modo que aquele que chegasse primeiro à outra encurtaria o caminho a ser percorrido por eles. 
Embora a estratégia tenha sido muito bem-elaborada pelos parlamentares, exigiu uma força extraordinária da federação e de sua comissão de trabalho, que envolve diretamente seu presidente, Luiz Carlos Neves, e os diretores Rogério Batista do Carmo, Geraldo Eugênio de Assis e José Lucimá de Souza, além da assessora jurídica,  Virginia Laira, que, há mais de cinco anos, lutam arduamente contra os interesses de grupos financeiros e securitários.
“A Fenacat é precursora em legitimar a atuação das associações de transportadores e, para isso, buscar apoio junto ao Congresso Nacional. Foram realizadas nesses cinco anos muitas reuniões com parlamentares, apesar das dificuldades que a federação enfrenta, como a ausência de recursos financeiros. Contudo, a resiliência da diretoria somada ao fato de acreditar no setor colhe este resultado importante: o Judiciário compreende o papel das associações, diferencia-as de seguradoras e utiliza o projeto de lei como subsídio em seus pareceres”, comemora Virginia Laira. 
No Senado, o Projeto de Lei 356/2012 foi aprovado por unanimidade no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Na Câmara dos Deputados, está em análise e votação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) em decisão terminativa. Após essas fases, seguirá para sanção da Presidência da República.
"Em um país com dois pesos e duas medidas, a situação das associações de proteção ficou extremamente complicada. No entanto, um Judiciário sério e comprometido com a Constituição Federal reafirmou aquilo que já esperávamos. Decisões diferentes só demonstram que grandes grupos econômicos conseguem distorcer em benefício próprio a verdade dos fatos", afirmou Geraldo Eugênio de Assis, vice-presidente da Fenacat.
Outro projeto de lei, o 4.844/2012, está tramitando na Câmara dos Deputados. De autoria do deputado Diego Andrade (PSD-MG), a proposta tem o mesmo teor: permitir que caminhoneiros se organizem em associação para criar fundo próprio com recursos exclusivos à prevenção e reparação de danos. "O funcionamento dessas associações vem suprindo a necessidade do caminhoneiro autônomo, necessidade essa que as companhias seguradoras vêm se negando a atender, alegando pouco retorno financeiro", afirmou o parlamentar.

O objetivo das associações é criar fundo próprio para, por exemplo, minimizar a perda com acidentes com transportadores de carga

O objetivo das associações é criar fundo próprio para, por exemplo, minimizar a perda com acidentes
com transportadores de carga

CONTRADIÇÃO NA SUSEP
No âmbito do projeto de lei na Câmara dos Deputados, o deputado federal Zé Silva articulou uma audiência pública na Comissão de Finanças e Tributação com vistas a reunir representantes do setor de transporte e profissionais que atuam em operações de seguro para encontrarem uma alternativa sem que qualquer das partes envolvidas seja prejudicada. Como resultado prático da audiência, obteve a formação de um grupo de trabalho composto pelos players diretamente envolvidos e interessados em pôr fim a tantos desencontros e desajustes. 
Grupos contrários às associações forçaram a saída de Roberto Steinbert, que supostamente travava um diálogo e buscava um entendimento junto às entidades. No lugar, entrou um superintendente  contrário à proposta das associações e defensor da categoria de corretores. Hoje, o superintendente é Joaquim Mendanha de Ataídes.
Para dar legitimidade ao grupo e criar um caráter oficial para suas conclusões, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) publicou a Portaria n.º 6.369/2015. Assim, o grupo de trabalho ficou oficialmente formado pelos seguintes membros: o coordenador geral de Fiscalização Direta da Susep, Christiano Henrique de Lucena Machado; a coordenadora de Seguro de Bens e Transportes e de Produtos, Rosana Dias da Silva; o secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Igor Barenboim; os representantes da Confederação Nacional de Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNseg), Neival Rodrigues Freitas; da Federação Nacional de Corretores de Seguros Privados e de Resseguros, de Capitalização, de Previdência Privada, das Empresas Corretoras de Seguros e de Resseguros (Fenacor), Celso Vicente Marini; da Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat), Virginia de Cássia Barbosa Laira; do Sindicato dos Transportadores Autônomos de Automóveis e Congêneres e Microempresas Transportadoras de Automóveis e Congêneres do Estado de Minas Gerais (Sintrauto), Rogério Batista do Carmo, e da Organização de Cooperativas Brasileiras,  Bruno Batista Lobo Guimarães.
Esse grupo concluiu que o auxílio mútuo é uma operação distinta da atividade de seguro, “haja vista a inexistência de transferência de risco para um segurador e de prêmio que represente o preço da assunção do risco”, informa o documento que apresenta a análise do grupo. 
O tópico principal, extremamente debatido nas reuniões do grupo de trabalho, foi o enquadramento ou não da atividade de auxílio mútuo como seguro. De acordo com o artigo 757 do Código Civil, “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento de prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados”.
Segundo conclusão do fórum, esses elementos não estão presentes na operação de auxílio mútuo, cujo grupo restrito não estaria atuando como seguradora, uma vez que não estaria assumindo para si os riscos de associado ou cooperado. Nesse caso, seria, ao mesmo tempo, beneficiário e fornecedor da garantia aos integrantes do grupo.
Além disso, o rateio dos prejuízos não exige a realização de estudo atuarial exaustivo, como ocorre em um prêmio de seguro. A contribuição para o fundo próprio não se enquadraria como benefício, pois não seria um preço correspondente à transferência de risco. 
Esse desfecho também é usado como referência no relatório do desembargador Kassio Marques. A própria Susep “reconheceu serem distintas as operações de auxílio mútuo e de seguro”.

MÉRITO DAS ASSOCIAÇÕES
Fica clara nas decisões judiciais a diferença da atuação das associações organizadas por transportadores e das seguradoras, o que vai ao encontro das conclusões do grupo de trabalho. Uma delas é que, enquanto a seguradora assume o risco pelo contrato, nas associações há vínculo associativo mutual. 
Outra referência é o teor do Enunciado 185 da III Jornada de Direito Civil, que disciplina seguros do Código Civil e as normas da previdência privada – as quais impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas e não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados como de autogestão. Além disso, não há proibição, diante do ordenamento jurídico pátrio, da criação de grupo (associação) para a divisão de despesa.
“O seguro mútuo caracteriza-se pelo rateio de prejuízos já ocorridos entre seus associados, agrupados com o fim específico de ajuda mútua na defesa de seu patrimônio, sem que haja intenção lucrativa. Não há distinção típica das figuras do segurador e do segurado, e o risco não é assumido pela associação, mas, sim, dividido entre os associados, que contribuem com prestações em razão das despesas apuradas”, enfatiza o desembargador Marques.
A subprocuradora Denise Vinci também pontua que os dirigentes das associações são “meros associados, eleitos com finalidade fiscalizatória da entidade, no entanto, sem poder de decisão sobre os rumos da atividade”.

GARANTIA DE SUSTENTABILIDADE DO SETOR
Ponto de destaque nas matérias é o entendimento da subprocuradora quanto à importância das associações na viabilidade das atividades, uma solução para o setor do transporte: “Os roubos frequentes de cargas e o excesso de violência nas estradas, aliados à dificuldade de cobertura pelas seguradoras, têm levado os motoristas a adotarem formas de proteção mútua que não se assemelham à venda de seguros. Ademais, as seguradoras se recusam a assegurar veículos com mais de 15 anos de uso ou cobram valores altos, sobretudo a motoristas autônomos”.
O presidente da Associação Particular de Ajuda ao Colega (Apac) Sul, Marcio Arantes, confirma que está cada vez mais difícil o transportador fazer seguro. “O mercado pratica valores absurdos para os caminhoneiros, que enfrentam frete desvalorizado, violência, ausência de infraestrutura viária e economia em crise. As associações são fundamentais para a sobrevivência desses profissionais”, salienta.
Segundo o desembargador Vito Guglielmi, relator de apelação na 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, “as associações de auxílio mútuo surgem exatamente nos espaços econômicos não ocupados, seja pela existência de um risco excessivo, seja pela impossibilidade de formação de uma coletividade homogênea em termos autuariais ou insatisfatoriamente atendida sobretudo pelos valores economicamente inviáveis dos prêmios pelo modelo securitário tradicional”.
O desembargador Kassio Marques ressalta que não há captação ilícita de seguro pelas associações ou mesmo deslealdade na concorrência de possíveis privilégios na competição.
“A visão do Poder Judiciário mostra que as associações funcionam de forma legítima, atendendo aos transportadores que não conseguem acessar seguro. Esse reconhecimento é um passo importante no sentido de termos a plena regularização da atuação dessas instituições”, conclui Flávio Henrique Rodrigues, vice-presidente da Associação de Prevenção de Acidentes e de Assistência aos Amigos e Cooperados da Coopercemg (Apacoop).

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