Muito trabalho pela frente

Especial

Artigo / 18 de Dezembro de 2015 / 0 Comentários
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Na época em que se celebra o Dia Mundial de Luta contra a Aids, médica que foi uma das criadoras da Sociedade Viva Cazuza conta retrocessos e conquistas da doença nas últimas três décadas

Em 1º de dezembro, comemora-se o Dia Mundial de Luta contra a Aids, que é o estágio mais avançado da doença que ataca o sistema imunológico. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, como também é chamada, é causada pelo HIV. A data é celebrada por decisão de uma assembleia da Organização Mundial de Saúde, realizada em outubro de 1987, com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, a data passou a ser adotada a partir de 1988. Apesar dos avanços e de o Brasil ser referência mundial no tratamento, houve alguns retrocessos. A Entrevias entrevistou Loreta Burlamarqui, médica clínica especializada também em tratamento de HIV/Aids, uma das pioneiras no tratamento da doença no mundo. Acompanhe:

Entrevias: Desde o início da epidemia, em 1980, até junho de 2012, o Brasil tem 656.701 casos registrados de Aids (condição em que a doença já se manifestou), de acordo com Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde. Em 2011, foram notificados 38.776 casos da doença, e a taxa de incidência de Aids no Brasil foi de 20,2 casos por 100 mil habitantes. Porém, gostaríamos de, para além dos números, saber como foi o histórico do HIV/Aids desde a década de 80 até hoje, com os problemas e os avanços.
Loreta Burlamarqui: Sou uma pessoa jurássica no assunto. Comecei a trabalhar com Aids em 1986, quando não tinha tratamento nenhum. Não tínhamos nada, e ninguém sabia nada, nem aqui nem no mundo inteiro. Era algo novo. Foi chamada de “câncer gay” e aquelas coisas todas da questão histórica que prejudicaram muito e promoveram o preconceito (na época, pessoas achavam que somente os homossexuais pegavam, que as mulheres não contaminavam os homens). Tudo besteira, tudo o que não tem nada a ver, mas que foi sendo visto depois. O que aconteceu foi o seguinte: começou um movimento muito grande, muito forte, por meio de organizações não governamentais e de grupos específicos (homossexuais, prostitutas, homens que faziam sexo com garotos de programa etc.). Também as organizações governamentais e os serviços de saúde passaram a se mobilizar, até que iniciamos um trabalho num campo mais amplo, não somente no âmbito da saúde, mas, também, com o objetivo de diminuir o preconceito, de convencer o plano de saúde de que ele tinha que atender a pessoa contaminada e mostrar que a contaminação não era como se achava.

No começo, tinha de tudo, como as chibatadas que a Igreja Universal dava em pacientes para “tirar o demônio” do corpo deles. Eu estive numa quando trabalhava no Ministério da Saúde e estava cedida para a Secretaria de Estado, na Coordenação de Aids do Estado (Rio de Janeiro), e me chamaram dizendo que aconteciam umas sessões de tratamento à base de chibatadas. Mesmo os médicos faziam tratamentos “milagrosos”, em que cobravam uma fortuna, e o que “curava” era injeção de água destilada. Nós tivemos de tudo, uma verdadeira caça às bruxas.

Fomos conseguindo e conquistando espaço, e, como havia artistas contaminados, e eu mesma fui médica de vários, e muita gente que, a princípio, aparecia mais na mídia, isso mobilizou muito a sociedade. Depois, todo mundo começou a ter um amigo, um parente, alguém próximo com Aids. Foi realmente espetacular o movimento. O Brasil conseguiu o que o mundo não tinha alcançado: tratamento gratuito, indiscriminado para todas as pessoas, o que temos até hoje.

EV: O tratamento no Brasil ainda é referência?
LB: O tratamento no Brasil é super-referência porque ele é totalmente gratuito. É um serviço público. E a gente continua brigando. De vez em quando, vem um aí querendo suspender as coisas, e nós temos os medicamentos mais novos para as infecções oportunistas. Enfim, foi uma conquista enorme. Então, o que aconteceu? A Aids começou a ficar controlada. A gente teve até uma campanha que dizia: “A Aids não é a mais aquela, olha a cara dela!”, porque as pessoas antigamente tinham cara de Aids, aquele rosto encovado. O estereótipo caiu por terra. E aí então começaram milhões de pessoas a viverem normalmente, casando, tendo filhos inclusive (porque existe a profilaxia da transmissão mãe e filho, processo em que o bebê não contrai o HIV), viajando, trabalhando. E já temos 30 anos de Aids nas costas. Tem pacientes que eu comecei a tratar em 1986, para infecções oportunistas, com zidovudina (também chamada de AZT fora do Brasil), que estão vivos até hoje. Os meus sobreviventes, vivos e bem.

É claro que perdemos muita gente nesse tempo, o que é muito angustiante. Jovens com uma vida pela frente. É muito difícil. Foi uma peste negra. Mas, quando acabou esse movimento, e o tratamento da Aids começou a melhorar, aconteceu uma coisa absolutamente esdrúxula: o desleixo outra vez. O raciocínio de milhões de pessoas foi o seguinte: “Já que tem tratamento, então, tudo bem. A gente pode se contaminar se for o caso”.

Por exemplo, era muito difícil a gente convencer as pessoas de usarem preservativo. Às vezes, eu dava palestra e dizia assim: “Vocês sabem qual é a maior forma de contaminação da Aids? Transmissão sexual. Quantos aqui usam camisinha em todas as relações sexuais?” Meia dúzia de gatos pingados respondia. Você pode garantir que seu namorado não pula a cerca ou que a namorada não o trai? Você também via essa situação: “Ah, de vez em quando, eu não uso. Quando eu estou muito tempo com uma pessoa, eu não uso”. Fora os adolescentes, adultos, jovens e idosos que não queriam usar camisinha mesmo.

Temos de sinalizar que tratamento não é cura. A pessoa precisa tomar remédio, fazer exames, ir ao médico. É claro que, hoje em dia, eu atendo milhares de pacientes que eu vejo somente três dias por ano. Mas, naquela época, eu os via toda semana; às vezes, todos os dias.

EV: Os progressos foram enormes, não? Da morte iminente para três consultas anuais...
LB: De fato, os progressos foram enormes, mas, em compensação, houve essa mudança, para pior. E também a sociedade passou a não ajudar mais porque não era mais uma coisa que mexia com as pessoas. Aí, as campanhas, os artistas do mundo inteiro, a verba para fazer festas beneficentes acabaram. A Aids banalizou. Este foi o grande problema: a banalização da epidemia da Aids. Com isso, evidentemente, os números de contaminação aumentaram. Agora, a nossa grande meta é que, primeiramente, a gente faça o teste, todas as pessoas que puderem o façam. É gratuito. Todo mundo sabe que, quanto mais cedo você souber que está infectado, mais rapidamente começará a tratar, e, às vezes, não há nenhuma infecção oportunista. Pacientes que eu comecei a tratar já com um método mais eficaz iniciado momento adequado nunca tiveram nada relacionado à Aids. Os pacientes até dizem: “Loreta, sabe qual é meu risco? Esquecer que eu tenho essa doença. Porque eu não sinto nada. Eu fico menos gripado do que os meus amigos”.

EV: E os cuidados?
LB: Mas não são necessários cuidados especiais. A vida fica normal. Você tem que ir ao médico, fazer o controle da imunidade da carga, viral e tomar o remédio corretamente. Quando temos de trocar o remédio, alteramos, pois o vírus fica resistente. A vida da pessoa segue normalmente: ela viaja, passeia, trabalha. Tanto é que até as questões legais mudaram um pouco. Antigamente, não se podia mandar embora, nem por justa causa, um paciente com Aids. Atualmente, é normal. Você não pode dizer que, se aquele paciente tem Aids, ele não pode ser demitido. Não tem mais isso. Ele está dentro de uma faixa de vida normal, a grande maioria dos pacientes é acompanhada e se trata. Em compensação, muitos dizem exatamente isto: “Já que tem tratamento, tudo bem”. Sem contarmos as loucuras. Existem umas festas nos Estados Unidos que se chamam “Bare-backing” (na tradução, cavalgar sem sela), com gente que tem muito dinheiro pessoas HIV positivas e negativas. Lá, você paga uma grana alta e faz sexo sem saber com quem para ver se ficaram ou não contaminados. Eu tive dois pacientes assim e disse o seguinte: “Olha aqui, queridinho, por duas vezes, você já me pediu o teste depois de uma festa dessas. Agora, se você se contaminar, vou te mandar para outro médico, porque você está se contaminando porque quer”.

Essas festas são tipo “roleta russa”. É uma nova forma de adrenalina, endorfina ou sei lá o quê. É uma nova autodestruição. Então, você vê que houve uma banalização, e é contra isso que estamos lutando.

Além de atender a qualquer um, pagando ou não pagando, em qualquer situação, às vezes de graça, de qualquer jeito, trabalho na Sociedade Viva Cazuza desde que ela começou (fui uma das criadoras junto com a Lucinha). Acontece que, no momento, não dá para tolerar isso. Pega praticamente quem quer.

EV: Você disse que as pessoas têm resistência ao preservativo.
LB: Sim, e a gente mostra que, além do HIV, há outras contaminações. Por exemplo, no momento, a sífilis está devastadora. O número de gente com sífilis é impressionante. As pessoas não usam preservativos e pegam sífilis, hepatite. Há um descaso muito grande em relação a isso. A campanha hoje continua sendo o não-preconceito. Por mais que se tenha melhorado, ainda tem o preconceito do paciente com ele mesmo. Há alguns que dizem assim para mim: “- Ah, eu não falo nada para ninguém porque eu tenho medo que me rejeitem”. Aí eu falo: “Bem, a primeira pessoa que está te rejeitando é você mesmo, não é o alheio. Em segundo lugar, se você não colocar ninguém em risco, se você usar preservativo sempre, tudo bem. Mas ocorre que, se você tem uma relação com uma pessoa de confiança, é uma questão de trocar essas ideias. Há milhares de casais discordantes. Um é positivo, o outro é negativo, e fica todo mundo muito bem, obrigada. Mas tem muita gente que tem essa autodiscriminação.

E tem outros que têm discriminação mesmo. Já recebi muita gente me ligando: “Ah, Loreta, minha empregada é HIV positivo. Meu neném nasceu. Eu posso deixá-la trabalhando?” Eu respondo: “Lógico, pode. Se não for fazer sexo com a criança e se não tiver uma doença qualquer, como a tuberculose”. Há dois dias, um casal de amigos me ligou apavorado para perguntar isso. Ainda existe o preconceito. A gente luta muito contra essa questão, e entra aí o preconceito em geral: de sexualidade, de cor, de quem é muçulmano... O mundo está virando fundamentalista. E, no meio disso, existe o preconceito de doenças como a Aids. Essa é uma luta.

Outra luta é o teste precoce. A gente sabe que, se você detecta precocemente, praticamente aborta a possibilidade de a pessoa vir a ter a doença. Ela pode ser HIV para o resto da vida e não ter Aids, que é a doença em si.

Mais uma questão é a profilaxia (forma de prevenção) pós-exposição: um enfermeiro se espetou com a agulha de um paciente portador de HIV. Ele tem a possibilidade de, no dia seguinte, receber gratuitamente um tratamento de 28 dias para tentar evitar que seja contaminado.

EV: Mas a profilaxia é garantia de não-contaminação?
LB: Não. Inclusive, a profilaxia pós-exposição também é isto: você teve uma relação sexual de risco. Estupro nem se fala. Uma pessoa que sofreu estupro tem realmente todo o direito, da mesma maneira que pessoas com doenças bacterianas, como também o HIV. Porém, a profilaxia pós-exposição de uma relação sexual qualquer existe e está disponível nos postos de saúde. Contudo, existem controvérsias. Por exemplo, muitas pessoas acham que, se você está dando a oportunidade dessa profilaxia, você está meio que dizendo: “Olha, você pode transar sem camisinha porque, no dia seguinte, você pode tomar o remédio”. Só que o remédio não é a garantia. Não há nenhuma garantia de que, se você tomar o remédio, você não vai se infectar.

EV: Estas são as questões atuais, Loreta? Banalização, preconceito e conscientização?
LB: O que está acontecendo atualmente é isso. É basicamente a banalização, essa questão do tratamento que traz uma vida normal, gerando na cabeça de algumas pessoas, principalmente dos mais jovens, que, se você tem tratamento, então tudo bem. Temos que incentivar o teste precoce, porque sabemos que existe um tempo de incubação do HIV de até dez anos. O vírus está há dez anos, e o paciente pode não saber, nunca ter tido absolutamente nada da doença nem relacionado.

Cansei de ir para o sambódromo, para a Banda de Ipanema (bloco de carnaval da zona Sul do Rio de Janeiro), para boate gay, para todos os lados levando camisinhas, dando palestras, falando, explicando para todo o tipo de gente. Mas o risco são os pacientes que você já vê que, digamos, de dez, oito anos para cá, realmente usaram preservativo direto, mas estavam incubados anteriormente.

Passamos por muita coisa. Eu digo que é uma história linda e triste, e com sucesso. O que nós, médicos, passamos nós passamos porque estávamos com eles. Mas não se compara com o que eles passaram, evidentemente. Nós tivemos uma fase muito difícil, muitas perdas, mortes, doenças ruins, coisas tristes, e conseguimos bastantes coisas, como medicação de ponta inclusive conseguimos
em um tempo em que os próprios homossexuais, os homens que faziam sexo com homens, muitas mães, mulheres casadas, prostitutas faziam propaganda, divulgação da prevenção. Eram um elo com a sociedade. Hoje, banalizou um pouco. As ajudas para toda e qualquer instituição ligada à Aids são
muito menores.

Então, estamos num campo de vamos fazer o teste precocemente para quem quiser, vamos mostrar que, se a pessoa estiver contaminada, não é mais um machado na cabeça, pois ela se pode tratar. Ainda assim, é preciso que evitem se contaminar, uma vez em que a gente sabe que o preservativo é totalmente seguro. Logo, não tem por que se contaminar. Essas são as nossas metas agora.

EV: Como banalizar uma doença incurável?
LB: Temos esse grande tratamento. “Ah, o tratamento foi ruim? Não, o tratamento foi maravilhoso, é salva-vidas, é espetacular”. Só que propiciou o pensamento. Se fosse uma cabeça boa, não iria pensar
que pode se expor e, se pegar, azar. Não é bem assim, mas acontece. Acho que é assim o foco da Aids hoje em dia.

O foco deste ano foi o teste precoce, foi ainda falar (como todos os anos) do preconceito. Seria chamar a atenção para que essa doença ainda não tem cura, ainda existe e as pessoas ainda se contaminam.
Infelizmente, houve um aumento de contaminação neste momento e, consequentemente, parou um pouco essa coisa de diminuição, caindo o número de contaminados. Houve um tempo em que parou. A gente não via casos novos. Agora, infelizmente, estamos vendo. Eu mesma, no consultório, recebi “recém-contaminados”, pessoas que descobriram o diagnóstico agora, minimamente umas dez pessoas. E foram anos em que não houve praticamente nenhum.

Entrevias: Anos sem ter um paciente que descobre ser infectado?
LB: Sim. Para você ver, nós temos distribuição de preservativos gratuita. É uma coisa que é quase um descaso, mas um descaso que a gente entende. É um saco usar camisinha a vida inteira, é muito chato cuida. Da mesma forma, eu sempre digo: é um saco tratar diabetes. É mais chato ainda. Diabetes tem mais limitações, tem dieta, não é nenhum exercício físico que pode, tem milhões de
restrições. Qualquer doença crônica tem restrições, principalmente as crônicas que não têm cura, como diabetes. É uma doença sem cura. Tem tratamento, mas não tem cura. É preciso tomar remédio, cuidar, fazer exame, ir ao médico... Evidentemente, a gente entende que é muito chato. Mas a gente tem que manter esse fogo aceso, senão a coisa vai sumindo, sumindo como se a epidemia não existisse, e, daqui a pouco, a gente terá, de repente, a eclosão de uma epidemia com vírus mais resistentes, mais complicados de se tratarem, e a gente não quer isso depois de tanta luta.

EV: Você foi uma das primeiras a cuidar de Aids?
Loreta: É uma coisa da qual me orgulho até hoje: de ter participado e participar disso. E a gente vê os filmes iniciais, filmes maravilhosos, como o inglês “Minha Vida Continua”, logo no início da epidemia de Aids em São Francisco, e as brigas de todos. Este novo filme, “Clube de Compras em Dallas”, interessantíssimo, mostra o câmbio negro de medicamentos que, até atualmente, não seriam utilizados, mas que as pessoas compravam para ajudar umas às outras. A questão da solidariedade. E, agora, a gente tem o remédio ali, no posto de saúde, cada um no seu bairro.

Por exemplo, eu tenho meu consultório. Eu posso prescrever um medicamento para um paciente, e ele ir lá só buscar o remédio no posto de saúde e tomar direitinho. Afinal, o remédio no vidro não adianta, tem que ser no vidro e na boca. A gente tem que manter essa coisa acesa, e é essa a importância do Dia Mundial contra a Aids. Estamos tentando reativar isso. A Lucinha (mãe do cantor Cazuza) volta e meia participa de programas na mídia e fala que a doença não acabou e não tem cura. Quem dera a gente pudesse dizer que acabou, virar a página e dizer que não tem mais Aids. Mas ela está aí e ainda não tem cura.

AUTOTESTE
A campanha deste ano reforça a nova mensagem sobre o tratamento e a prevenção, bem como a decisão recente do governo federal de autorizar a comercialização do autoteste para o diagnóstico
da doença em farmácias e drogarias.

A medida visa permitir que pessoas com receio em fazer o teste nas redes pública ou privada possam realizar um autoteste e, a partir disso, buscar tratamento para a redução da carga de vírus no corpo, adquirindo maior qualidade de vida no convívio com o vírus e redução da transmissão do HIV.

De acordo com o governo, o kit para o autoteste deverá estar disponível no mercado brasileiro no primeiro semestre de 2016.

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