Na luta para ajudar a população

Capa / 10 de Fevereiro de 2020 / 0 Comentários
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A primeira reportagem especial da Entrevias em 2020 revela um impasse que não foi solucionado no ano passado: o pleno exercício da atividade dos grupos voluntários de resgate que atuam no atendimento pré-hospitalar.

Na edição de janeiro de 2019, a revista mostrou os impactos das normas previstas pela Portaria nº 33/2018, publicada pelo Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais (CBMMG) com base na Lei Estadual 22.839/2018. A norma trata da prática de atividades na área de competência da corporação por voluntários, profissionais e instituições civis, e a portaria visa organizar, padronizar e regulamentar a atuação desses socorristas.

Na Portaria nº 33, o que preocupa os grupos voluntários é a determinação de que somente médicos, enfermeiros ou técnicos de enfermagem atuem diretamente no contato com vítimas em casos de atendimentos pré-hospitalares. O presidente da Associação de Bombeiros Voluntários e Equipes de Resgate Voluntário do Estado de Minas Gerais (Volunterminas), Fabrício de Oliveira Coelho, diz que essa exigência é difícil de ser cumprida, pois a maioria das associações é composta por voluntários com diversas formações profissionais. Entretanto, ele salienta que todos são treinados para atuarem como bombeiros voluntários e socorristas. Para isso, eles passam por uma série de capacitações em salvamento, atendimento pré-hospitalar, prevenção e combate a incêndios, resgate e socorro a vítimas.

“O governo do Estado não oferece nenhuma contrapartida para garantir condições de trabalho, como aquisição e padronização de uniformes, de veículos e de equipamentos. Além disso, a intervenção do Estado é inconstitucional. Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XVIII, a criação de associações e cooperativas independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”, ressalta Coelho.

Ausência de comunicação

Frente às novas diretrizes, diversas frentes políticas e jurídicas foram implementadas por instituições que representam os interesses dos grupos voluntários. Uma delas consta de um termo de compromisso entre a Volunterminas e o CBMMG, assinado em 6 de janeiro de 2019. Os objetivos foram viabilizar o cumprimento da lei e manter os serviços dos socorristas civis. Também foi acordado que caberia à associação encaminhar a documentação das instituições que prestam atendimento e à corporação militar receber e analisar cada requerimento de credenciamento enviado. Até que isso ocorresse, não seriam aplicadas as sanções previstas pela Lei 22.839/2018.

No entanto, o Corpo de Bombeiros multou as associações que não atenderam às normas. De acordo com a Divisão de Gestão de Atividades Auxiliares, vinculada à Diretoria de Atividades Técnicas da corporação, “a Volunterminas apresentou um ofício ao CBMMG em que constava a relação de 18 associações sem fins lucrativos a ela associadas. Dessa relação, apenas 13 entidades apresentaram a documentação de credenciamento prevista na Portaria nº 33/2018, conforme consta no termo de compromisso”.

Para o Corpo de Bombeiros, “o acordo estabeleceu de forma clara que as instituições que não apresentassem a documentação prevista na Portaria nº 33/2018 estariam sujeitas a sanção administrativa e estão sendo fiscalizadas pela corporação com o devido processo de aplicação de sanção”.

O presidente da Volunterminas explica que as cinco associações com pendências na documentação foram notificadas pela entidade para tomarem providências e efetuarem a regularização. Coelho enfatiza, contudo, que há um ano vem buscando um contato com o Corpo de Bombeiros para discutir conjuntamente a situação das instituições e os impactos da Portaria nº 33 e, assim, encontrar soluções.

“Enviamos ofícios solicitando um retorno da corporação quanto à análise dos documentos e quanto à reunião com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. O Corpo de Bombeiros se comprometeu a intermediar junto à pasta a definição de critérios de reconhecimento de voluntários que tripulam as ambulâncias, retirando a exigência de profissionais da área (médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem). Entretanto, não tivemos nenhum retorno”, diz Coelho.

O presidente da Volunterminas também ressalta que, desde sua criação, em 2017, a instituição realiza ações para garantir a padronização das estruturas de suas afiliadas, manter a qualificação e a qualidade do serviço prestado pelos voluntários, pelos profissionais e pelas instituições civis à sociedade mineira.

Complementariedade

“A Volunterminas tem transmitido a todas as suas afiliadas que o Corpo de Bombeiros é uma instituição de enorme credibilidade, e a missão da instituição é colaborar para que os mais de 770 municípios mineiros que não possuem uma estrutura do Estado para atendimento possam tê-lo em situações de emergência ou de calamidade pública, independentemente de o CBMMG ser uma corporação de bombeiros do Estado, militar, civil ou de voluntários”, afirma o dirigente.

Coelho conta que menos de 10% das cidades mineiras possuem instalações de bombeiros militares, cujos critérios de implementação de base são o número de habitantes, o grau de urbanização e a quantidade de óbitos por causas externas, entre outros fatores.

Os bombeiros e as equipes voluntárias prestaram em 2019 mais de 4.500 atendimentos pré-hospitalares, atuaram em 185 ocorrências de incêndios e em cerca de 1.200 atendimentos clínicos. “Chegamos a lugares onde o Estado não consegue estar presente, especialmente nas BRs 040, 116, 262 e 381, sempre com postura de ajuda e parceria. Nunca tínhamos sofrido uma intervenção, pois há excelência nos serviços prestados. Afinal, são equipes treinadas, que passam por uma formação permanente e que seguem diretrizes do Ministério da Saúde e das demais leis em vigor”, destaca Coelho.

Os voluntários que atuam nas instituições afiliadas à associação são médicos, enfermeiros, engenheiros, técnicos em segurança do trabalho, professores e profissionais liberais que passaram por uma capacitação inicial e seguem em formação contínua coordenada por instrutores renomados para prestarem atendimento à comunidade.

Segundo o presidente da Volunterminas, os grupos trabalham de forma organizada e regulamentada em atendimentos pré-hospitalares, combates a incêndios, resgates, buscas e salvamentos. Também atuam na preparação e na inclusão social da comunidade. “Vale destacar que as instituições filiadas à Volunterminas não realizam atividades de prevenção nem análises de projetos, ações de competência única e exclusiva do Corpo de Bombeiros”, pontua.

Questionado sobre o trabalho dos voluntários, o Corpo de Bombeiros disse que reconhece a atuação dos profissionais, que promovem um serviço de relevância nas áreas de competência da corporação. “Porém, esse serviço deve estar de acordo com a Portaria nº 33/2018. É necessário ter a garantia de que as pessoas estão bem-treinadas, a fim de que a população receba o mínimo de qualidade no atendimento prestado. Nas ações de fiscalização do CBMMG, aquelas pessoas físicas ou jurídicas que forem identificadas no descumprimento da lei estadual ou da portaria serão submetidas a procedimento administrativo para a aplicação de sanção. Já as pessoas que possuem credenciamento estarão sob a coordenação do Corpo de Bombeiros quando atuarem de forma conjunta”, declarou a corporação.

De acordo com as normas

A Portaria nº 33 prevê, além de profissionais da saúde no pré-atendimento hospitalar, o credenciamento de voluntários, cursos de formação, padronização na confecção de uniformes e na identificação de veículos. Para serem credenciados, voluntários e instituições civis devem passar por uma avaliação. O descumprimento das normas poderá ser punido com multa e com a suspensão das atividades daqueles que infringirem as regras de atuação.

De acordo com Coelho, a Volunterminas é parceira do Corpo de Bombeiros e está colaborando constantemente com o órgão estatal para identificar pessoas ou instituições que atuam de forma irregular e/ou ilegal.

Em 16 de fevereiro do ano passado, representantes das diretorias das associações de bombeiros voluntários e equipes voluntárias de resgate filiadas à Volunterminas se reuniram para aprovar mudanças a serem executadas por cada instituição com o objetivo de elas cumprirem a legislação em vigor, evitarem o crime de usurpação de função pública e possibilitarem o fortalecimento da categoria. Nesse sentido, os estatutos e os regimentos foram aprimorados e houve a padronização dos nomes para Associação Humanitária de Serviços Sociais Voluntários e da grade curricular do curso de formação inicial a fim de se nivelar o conhecimento e proporcionar mais qualidade e segurança ao serviço ofertado.

“Precisamos também alterar toda a identidade visual aplicada em veículos e uniformes. Devido ao alto custo – aproximadamente R$ 2 milhões –, a Volunterminas protocolou junto ao governo do Estado uma solicitação de apoio técnico e financeiro. Até o momento, não obtivemos resposta. Caso não recebamos a ajuda, as afiliadas terão um prazo de cinco anos para se adequarem”, afirma o presidente da entidade.

As instituições filiadas à Volunterminas atuam por meio de termo de fomento com os municípios, conforme determinado pela Lei Federal 13.019, de 2014, e de parcerias privadas.

Importante história

A Volunterminas segue o modelo adotado em todas as nações desenvolvidas da América do Norte, da Europa, da Ásia e da Oceania. Nesses continentes, os grupos voluntários contam com o apoio governamental e com uma intensa participação comunitária, respondendo por 90% dos postos de atendimento. Assim, a cada 5 km, em média, há uma unidade de primeira intervenção e pronta-resposta.

No Brasil, a inspiração vem da região Sul. A Associação de Bombeiros Voluntários do Estado de Santa Catarina (os Bombeiros Voluntários de Joinville) – criada em 1892 – e a Associação de Bombeiros Voluntários do Estado do Rio Grande do Sul são referências para o trabalho dos grupos mineiros que atuam há 20 anos no pré-atendimento.

“As instituições estão se fortalecendo e esperam, com o apoio do governo, posicionar Minas Gerais como mais um Estado brasileiro que dispõe de mais de uma categoria de bombeiros para atender os municípios sem estrutura, salvando vidas e patrimônios”, almeja Coelho.

Todavia, o fundador do grupo Anjos do Asfalto – que atua na BR-381, na região metropolitana de Belo Horizonte –, Marcus Campolina, revela que as ações do Corpo de Bombeiros caminham de encontro a esse objetivo. A corporação enviou, no ano passado, ofícios para as prefeituras mineiras alertando sobre termos de parcerias entre os órgãos municipais e as associações de bombeiros voluntários. “Tenho a impressão de que o objetivo é minar a atuação desses profissionais”, suspeita Campolina.

Na prática

O presidente da associação Bombeiros do Prata, Bráulio Perdigão, diz que a maior dificuldade é a escassez de recursos financeiros e de equipamentos. “Enfrentamos a falta de reconhecimento do Estado. Os municípios apoiam nosso trabalho, fornecendo materiais básicos para manutenção, devido às limitações orçamentárias. Sempre trabalhamos em parceria com o Corpo de Bombeiros e, até hoje, nunca tivemos problemas, pois atuamos com seriedade, compromisso e respeito mútuo entre as instituições”, salienta.

O presidente do grupo Anjos do Asfalto, Geraldo Eugênio de Assis, espera que o trabalho em parceria na assistência às vítimas permaneça harmônico e com o mesmo espírito de cooperação. “Somos 35 socorristas, entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e outros profissionais, todos em torno do mesmo objetivo: salvar vidas com responsabilidade e compromisso com as normas”, garante Assis.

Campolina corrobora e ressalta que o trabalho realizado durante todos esses anos é legítimo. “Somos reconhecidos pela sociedade, pelo Corpo de Bombeiros e pelas equipes do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], pois somos profissionais sérios e nunca cometemos negligência e/ou erro”, assegura Campolina.

Ele também enfatiza que toda a equipe é qualificada e trabalha de acordo com a legislação vigente. “Atuo há 17 anos nessa área e me preocupo muito com os impactos da Portaria nº 33, pois observamos, no decorrer dos anos, o aumento do número de ocorrências e, ao mesmo tempo, a defasagem de ambulâncias e de profissionais do governo do Estado para os atendimentos. Nossos equipamentos são mais modernos do que os de algumas corporações do interior de Minas Gerais, pois recebemos doações do Tribunal de Contas estadual, o que revela nossa atuação legítima”, destaca.

Campolina acrescenta que diversos deputados buscaram um contato com o Executivo estadual com o objetivo de revisar a portaria. “Esperamos que ela esteja em revisão, pois sentiremos uma tristeza profunda se não tivermos condições de continuar nossas atividades”, lamenta.

O presidente da Volunterminas ressalta que, se a corporação militar não dialogar com esses grupos, o trabalho ficará inviável. “No começo do ano passado, paralisamos as atividades por dois dias. Não queremos suspender novamente, mas, caso seja mantida a ausência de diálogo, vamos suspendê-las por tempo indeterminado”, conclui Coelho.

De acordo com o artigo 147 da Portaria nº 33, até 2 de julho deste ano, todo o conteúdo dela será revisado com o objetivo de aprimorá-la e atualizá-la. Os profissionais ouvidos nesta reportagem foram unânimes ao ressaltar a necessidade de mudanças.

“Em toda a minha atuação, nunca vi nada que atrapalhasse mais do que essa norma. Temos título de utilidade pública, caminhão, ambulância e terreno para a construção da sede doados por importantes instituições. Somos a primeira resposta no pré-atendimento, pois não há companhia de bombeiros na cidade. Quando os militares chegam, relatamos o ocorrido e nos colocamos a postos se necessário, sempre com uma postura de respeito e de suporte”, afirma o presidente da Associação dos Bombeiros Civis de Nova Lima, Paulo César Cruz.

Apesar disso, ele conta que a instituição foi autuada e interditada, porque o endereço registrado é o da casa dele – a sede ainda será construída. “Recebemos uma multa de R$ 3.800,00, há quatro meses, e estamos impedidos de trabalhar. O processo corre na Justiça. Frente às situações que vivenciamos com as chuvas, no entanto, não nos furtamos e atuamos dia e noite até ajudar todos os impactados”, diz Cruz.

O presidente garante que a associação tem um compromisso com a sociedade e que ela não vai parar. Para ele, a norma do Corpo de Bombeiros tem orientações importantes, como a formação dos profissionais, mas outras, como detalhes de uniformes e de identificação, não agregam valor ao trabalho.

“Nesse momento em que estamos imersos em lama e em entulho, o importante é salvar vidas e contribuir para que as pessoas fiquem em segurança. Pouco importa a cor da nossa camisa”, salienta Cruz.

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