Não é brincadeira!
Mesmo proibido, soltar pipa usando cerol ou linha chilena ainda é frequente. Um quarto dos acidentes com motociclistas envolvendo cerol no país é fatal.
A- A A+“Voltava do hospital no fim da tarde, indo para Ravena, quando, na altura do KM15 da BR-381, ultrapassei um caminhão e senti o impacto de uma linha no meu pescoço. Coloquei a mão e vi que estava sangrando. Imediatamente, sinalizei para estacionar no acostamento, e o carro que estava atrás me seguiu. Ao parar a moto, vi o sangue na minha jaqueta”. O relato da empresária Maísa Paula Rocha, de 29 anos, mostra o perigo de uma brincadeira nada inocente: ela foi vítima de linha com cerol. Felizmente, a jovem participa desta reportagem com saúde, contando seu acidente, que terminou bem graças a uma série de fatores.
“O primeiro e o mais incrível é a mão de Deus! Assim que parei a motocicleta, o casal que estava no veículo atrás me ajudou, ficando do meu lado. Em seguida, passava do outro lado da rodovia a ambulância dos Anjos do Asfalto. De repente, tinha um socorrista comigo: me acolhia e cuidava do ferimento. Eles são anjos mesmo, enviados pelo nosso Pai!”, relembra Maísa.
A célere primeira resposta do atendimento a Maísa oferecida pelos Anjos do Asfalto e a empatia de desconhecidos que ficaram com ela foram determinantes para que a empresária saísse com vida da situação.
“Foi uma coincidência feliz que salvou uma vida”. Assim descreve o socorrista do Anjos do Asfalto Jefferson Baptista, o responsável pelo atendimento a Maísa, que voltava – juntamente com a equipe do grupo de resgate – de um dia relativamente tranquilo de ocorrências.
Jefferson detalha: “no trecho onde estávamos, sempre é necessário reduzir a velocidade, pois tem retenção de veículos por causa de uma barreira da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Como protocolo, ficamos alerta o tempo todo, e vi do outro lado da rodovia um capacete mexendo de forma diferente. Pedi para deslocar nosso veículo à esquerda, reduzindo ao máximo a velocidade, e observei uma pessoa parada no acostamento. Naquele momento, pedi para estacionar e fui correndo até ela, atravessando entre os carros. Também havia uma viatura da PRF atrás da nossa ambulância e avisei aos policiais que tinha linha de cerol ou chilena. Eles saíram correndo para identificar a possível pessoa que soltava a pipa e para verificar se havia outras, para se evitarem novos acidentes”, relembra.
Exemplo de altruísmo
O socorrista conta que, chegando ao local, Maísa estava muito assustada, pois tinha muito sangue em sua roupa devido ao pescoço cortado em cerca de 4 cm. “Fiz a contenção do ferimento e estabilizei o queixo, pois poderia ter uma lesão cervical (além do corte em si). Atuamos na primeira resposta, fazendo um curativo compressivo, e Maísa foi encaminhada para uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) na região Norte de Belo Horizonte, pois não corria risco de morte”, detalha.
Os Anjos do Asfalto estavam na hora e no local certo! Visto que eles atuam em rodovias, local com maior gravidade de acidentes (de todos os tipos), a primeira resposta ao atendimento que prestam às vítimas é aliada do trabalho dos profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e do Corpo de Bombeiro Militar.
“Infelizmente, muitas vezes, estamos no pior momento da vida da pessoa e, por isso, temos hiperfoco na vítima e estamos atentos ao seu estado de saúde como um todo. Por isso, é preciso amparar, acolher, executar com precisão os procedimentos e oferecer assistência psicológica. Esse trabalho conjunto exige muito conhecimento e experiência”, explica Jefferson.
Há sete anos, ele atua como voluntário do Anjos do Asfalto e tem especialização técnica em urgência e emergência e compõe uma equipe de cerca de 35 profissionais, liderada pelo socorrista e presidente do grupo de resgate, Geraldo Eugênio de Assis.
Jefferson e outros socorristas que ajudaram Maisa esperam, brevemente, encontrá-la em seu restaurante. “Não vejo a hora de recebê-los e agradecer por todo o cuidado. Foi um dia em que nasci novamente quando voltava do hospital, pois minha avó estava internada. Pela vontade de Deus, ela se foi naquela mesma data, dia 4 de setembro deste ano, e eu renasci!”, emociona-se.
Registros
Segundo dados da Associação Brasileira de Motociclistas (Abram), a cada cem acidentes com material cortante em motociclistas anualmente no Brasil, cerca de 50 causam ferimentos graves, como mutilações, e, desse total, 25 são fatais.
O gerente médico adulto do Hospital João XXIII, Rodrigo Muzzi, recebe na instituição casos graves de acidentes com cerol e linha chilena. Ele observa que, mesmo com o perigo iminente dessa prática, os casos mantêm uma média de ocorrência nos últimos anos: em 2019, foram 27 pessoas atendidas; em 2020, 30; e, no ano passado, 26 vítimas.
“Não é uma brincadeira inofensiva, pois o cerol e outros materiais aplicados na linha causam lesões graves e mortes. Temos registros de amputações e cortes profundos no pescoço que causam impactos para a saúde pública e marcam para sempre a vida das vítimas”, alerta o profissional.
Outra fonte de informações sobre esse tipo de ocorrência é a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. Em nota, a pasta informou que, até o ano de 2019, a Classificação Internacional de Doenças (CID) não especificava acidentes por cerol. Os pacientes atendidos por cortes, perfurações e punções em geral são notificados por Y28 - Contato com objeto cortante ou penetrante, intenção não determinada”. Os dados das ocorrências por linhas cortantes atendidas pelo Samu-BH são: duas pessoas em 2020, 14 vítimas em 2021 e, neste ano (parcialmente até 5 de setembro), oito casos.
O idealizador da Campanha Cerol Não, Robson Moraes Almeida, critica a descentralização das informações: “São diversos órgãos de saúde que recebem os atendimentos, mas não há uma plataforma que centralize os dados com o recorte mais detalhado nem obrigatoriedade nessa classificação e, por isso, não temos o real número de ocorrências”. Ele faz analogia à violência contra a mulher: ao tipificarmos, temos um retrato do comportamento desse tipo de crime.
Perigo no ar
Robson, que, desde 2004, chama atenção para esse problema por meio da Campanha Cerol Não!, apresenta uma informação pouco explorada: você sabia que existe a “linha voada”? É aquela que foi cortada há muito tempo (que tem cerol ou material cortante) e está adormecida até que o vento faz com que ela voe novamente. “Se um carro passa e a linha enrola-se na roda, torna-se uma navalha. Uma criança na região metropolitana de BH perdeu uma perna assim. Uma linha com material cortante já atingiu um parapente e um helicóptero militar em treinamento... é um problema gravíssimo”, salienta.
O cerol, mistura de cola com vidro moído, e a linha chilena, feita de cola com óxido de alumínio e pó de quartzo, são perigosos também para os próprios usuários, que podem sofrer acidentes caso a linha da pipa se enrosque na fiação elétrica, causando curtos-circuitos, quedas de energia e rompimento dos cabos.
Pássaros
E os pássaros são outras vítimas. Neste ano, a Fundação do Meio Ambiente do Pantanal atendeu 19 aves feridas por cerol nas linhas de pipas. A média tem sido de três a quatro por mês. Por ser muito fina, não é detectada durante o voo, e o resultado do acidente é um corte profundo, geralmente em sua asa, podendo ser comparado a um corte a laser.
Em quase 90% desses casos, a linha atinge um ligamento da asa responsável pelo voo que, se rompido, condena o animal a nunca mais a voar na vida. Entre as espécies mais afetadas estão urubu, maritaca, arara, papagaio, periquito e tucano. Os danos irreversíveis ou a morte dessas aves causam desequilíbrio ecológico.
Proteção
Atualmente, nove Estados brasileiros, mais o Distrito Federal e diversos municípios do país têm leis que proíbem a utilização de materiais cortantes. Outros vedam a comercialização da substância constituída de vidro moído e óxido de alumínio para uso em pipas e até a industrialização desses materiais, com previsão de multas e responsabilidade criminal.
Em Minas Gerais, por exemplo, a Lei 23.515/2019 proíbe a venda de cerol e linha chilena e prevê multa e detenção entre dois e cinco anos. Já o Projeto de Lei 3358/2020 tipifica o uso, a venda e o porte de cerol ou linha chilena como crime de perigo para a vida ou saúde de outros, com pena de três meses a um ano de detenção. Em fevereiro deste ano, ele foi apensado ao PL 4.378/2019 e aguarda a tramitação na Câmara dos Deputados.
“Contudo, não há uma legislação completa, de âmbito nacional e abrangente, que contemple todas as frentes para enfrentar de fato essa prática. Temos uma proposta, construída por atores estratégicos, que prevê a proibição do uso, a fabricação (artesanal e industrial), o armazenamento, a comercialização, o transporte e o porte. Contatamos parlamentares e recebemos o retorno de que é a lei é supérflua. Assim é tratada a vida!”, critica Robson.
O médico Rodrigo Muzzi defende a aplicação severa de punição para quem utiliza materiais cortantes pra soltar pipa. “Importante pontuar que, em caso de criança que usa o cerol, o responsável legal deverá ser responsabilizado. Ele tem o papel formador e, caso não o faça, que tenha consequências”, frisa.
Ele recomenda o uso permanente de antenas nas motocicletas, o protetor de pescoço para os motociclistas e o cumprimento de medidas punitivas. O uso de antena corta-pipa é obrigatório, de acordo com o Artigo 139 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Ela protege a região do tórax e do pescoço - onde fica localizada a aorta, principal veia do corpo humano. A não utilização desse equipamento pode colocar em risco a vida de quem pilota, pois deixa a pessoa vulnerável a ser atingida pelas linhas cortantes.
Enquanto a sociedade não se conscientiza de que isso é um tipo de crime e de que os interesses comerciais predominam – pois até em e-commerce é possível comprar material cortante –, as autoridades indicam que as pessoas se protejam.
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