Pelo fim das drogas no trânsito

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Capa / 03 de Novembro de 2015 / 0 Comentários
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Exame toxicológico para motoristas profissionais, a ser implementado no Brasil, em 2016, é uma das soluções mais eficientes para acabar com o genocídio em vias brasileiras

Estudos da pesquisadora Mary O’Kane revelam risco 6,4 vezes maior de provocar acidentes no trânsito em condutores que fizeram uso de cannabis, conhecida como maconha. Pesquisas do farmacologista e toxicologista forense Olaf Drummer determinaram que motoristas que apresentavam resultados positivos para drogas psicotrópicas eram significativamente mais prováveis de ser culpados por colisões do que aqueles que as não tinham utilizado. Existem, ainda, estudos internacionais que mostram que o uso de derivados anfetamínicos (como o ecstasy) pode aumentar perigosamente a autoconfiança do condutor, promovendo mais envolvimento em situações de risco.
Segundo a Transportation Research Board, as anfetaminas têm um efeito negativo na capacidade de dirigir. Porém, como em muitos casos de psicoestimulação, não são os efeitos agudos da droga, mas aqueles obtidos após a estimulação, de fadiga, que mais prejudicam a condução.

As informações científicas corroboram a sabedoria popular: drogas não combinam com volante. A partir dessa máxima, países implementaram medidas com o objetivo de dirimir o genocídio no trânsito. O Brasil aposta em uma ação que enfrenta desafios para ser, de fato, executada: o exame toxicológico para motoristas profissionais. Todavia, ele já se tornou uma novela, ainda sem final feliz, para ser efetivamente um instrumento fundamental para pôr fim aos acidentes de trânsito. “Políticas públicas que visam salvar vidas deveriam ser priorizadas. A obrigatoriedade do exame toxicológico para motoristas profissionais é uma medida urgente, que apresenta resultado positivo em outros setores da sociedade brasileira, como a segurança pública, e em países internacionais”, enfatiza o presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto), Carlos Roesel.

Em 2013, o Conselho de Trânsito publicou a Resolução 460, que obriga a realização de exame toxicológico em motoristas de ônibus, de caminhões e de carretas (com Carteira Nacional de Habilitação – CNH – categoriasC, D e E) que vão tirar ou renovar o documento. A medida, que começaria a valer em junho de 2014, não foi implementada. O Contran, por meio da Resolução 490, prorrogou o início dela para 1º de setembro de 2014. Contudo, isso não ocorreu. O conselho, através da Resolução 517/2015, estabeleceu, então, novo prazo, 30 de abril de 2015, para a exigência do exame toxicológico aos motoristas das categorias C, D e E que irão adicionar ou renovar a CNH. Essa norma revogou as resoluções anteriores, que estabeleciam 1° de março deste ano como data-limite. Porém, a Resolução 529, de 14 de maio, estipulou novo prazo para a vigência da medida: 1º de janeiro de 2016.“Não existe a expectativa de novo adiamento. Representantes​ do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) estão se reunindo com os diretores dos departamentos estaduais (Detrans) para se buscar a realização do exame com legalidade e segurança para o condutor”, ressalta o coordenador substituto de Informatização e Estatística do Denatran, Jairo Mota Castro.​

ENTRAVES
Prestes a completar dois anos de criação, a lei que prevê a implantação do exame para motoristas profissionais enfrentou barreiras. “Um universo de 13 milhões de condutores, nas categorias C, D e E, com o volume mensal de exames girando em torno de 200 mil requer uma logística planejada”, pontua o representante do Denatran.

Outro ponto interpretado pelo departamento é o conflito entre a Resolução 517 do Contran – que diz que o exame deve ser feito por entidades prestadoras de serviços laboratoriais – e a Lei dos Caminhoneiros (13.103/2015), que prevê que os exames serão realizados por laboratórios credenciados pelo Denatran. Segundo Jairo Mota Castro, esse item foi resolvido. A Resolução 517 dispõe sobre o credenciamento das entidades públicas e privadas responsáveis pelo exame.

ESTRUTURA DE PONTA
A estrutura laboratorial também foi uma questão amplamente debatida. “Na época da publicação da Resolução 460/2013, os laboratórios investiram em sua infraestrutura e em sua técnica. Atualmente, o Brasil possui pontos espalhados de análise com capacidade e capilaridade de atendimento. Contamos, inclusive, com empresas internacionais nesse setor ”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Laboratórios Toxicológicos (Abratox), Marcello Santos.

O representante do Denatran reforça a afirmativa: “os Estados da Federação contam com clínicas legítimas e que prestam serviços de excelência para a realização do exame, e o departamento fará o monitoramento das atividades dos laboratórios por meio de relatórios”.

Para incrementar a estrutura no Brasil, o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) integrou, em agosto deste ano, a comitiva da Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados que esteve na unidade de testes toxicológicos da empresa Quest, no Kansas, e na unidade de testes clínicos da Psychemedic, na Califórnia. “Fomos aos Estados Unidos convidar os representantes dos laboratórios para, no futuro, instalarem filiais no Brasil. Eles concordaram”, contextualiza.

MODELOS INTERNACIONAIS
Além de visitarem os laboratórios, os parlamentares estiveram na sede corporativa da JB Hunt Transport, a terceira maior transportadora de cargas nos Estados Unidos, que já realizou mais de 70 mil exames de cabelo em seus motoristas. “Depois disso, fomos a Washington para conversar com parlamentares ligados ao Ministério dos Transportes. Obtivemos informações sobre como a legislação americana acolhe esse tipo de exame, quais são as consequências, como as autoridades atuam quando pegam usuários de drogas dirigindo um caminhão ou outro veículo”, conta Nelson Marquezelli.

O parlamentar explica que, quando existe a suspeita de que um motorista usou drogas, os responsáveis pela fiscalização do trânsito cortam um pedaço do cabelo dele, lavram a multa e encaminham o material ao laboratório pelos correios. O resultado é liberado em 30 dias e enviado ao órgão que lavrou a multa.

Tanto nos EUA como na Europa, as empresas elegem o teste de drogas em amostras de cabelo para a admissão dos motoristas e usam o bafômetro ou o teste em saliva ou em urina, de forma aleatória, antes que o motorista comece o dia de trabalho, ou em blitze nas estradas.

Em alguns países da Europa, como na Alemanha, na Suíça, na Itália e em Luxemburgo, o modelo é o seguinte: por ocasião de uma blitz ou de um acidente, se a pessoa apresentar níveis de álcool ou drogas em seu organismo, ela perderá a carta de motorista. Para reaver o documento, ela precisará fazer um exame de cabelo para álcool (ETG) e drogas a cada seis meses ou uma vez por ano durante dois ou três anos, a fim de demonstrar que não mais faz uso de álcool ou drogas (dependendo do que foi a causa da perda da carteira de motorista). Essa legislação varia de acordo com a nação e com a gravidade da infração. O juiz estipula como deve ser feita a reabilitação do motorista.

De acordo com o presidente da Abratox, na Austrália todos os motoristas profissionais são testados ao longo de suas carreiras. Nas Filipinas, 100% dos profissionais do volante realizam exame toxicológico, e a Rússia prepara regulamentação para determinar que todos os motoristas profissionais sejam testados regularmente por exames toxicológicos de larga janela de detecção.

INOVAÇÃO
O modelo a ser implementado no Brasil é inédito. Não existe legislação em nenhum país do mundo que exija o exame toxicológico a partir do fio de cabelo para a renovação de carta de habilitação. Essa análise indica a presença de vestígios de drogas e fornece uma visão do uso ou da abstinência dessas substâncias por um período de tempo longo, meses ou até anos. Esse método é classificado como de larga janela de detecção.

A realização do exame e a identificação de substâncias psicoativas não constituem a inaptidão. Os motoristas podem estar utilizando medicamentos, sob prescrição médica, que possuem em sua composição algum elemento detectado pelo exame.
Por essa razão, a quantidade e a duração do uso identificadas no exame deverão ser submetidas à avaliação médica em clínica credenciada, que emitirá um laudo final de aptidão do candidato a condutor. A existência da substância psicoativa não configura isoladamente uso ilícito ou dependência. O médico avaliador é o responsável final pela análise e pela avaliação das informações.

É importante ressaltar que o Contran estabelece na Resolução 460 os procedimentos que permitem ao cidadão a realização do exame, o anonimato, o conhecimento antecipado do resultado e sua decisão sobre a continuidade ou não dos procedimentos de habilitação profissional, somente possível mediante a apresentação no Detran do exame laboratorial.

“O objetivo do exame não é saber se o motorista está sob o efeito de droga no momento, mas identificar um padrão de comportamento para o médico do órgão do trânsito decidir se concede habilitação ou não. É um instrumento. Estudos científicos comprovam a eficiência da detecção em janela de larga escala, e, inclusive, diversos órgãos ligados à defesa e à segurança pública nacionais realizam o exame desde 2002. Dados revelam diminuição da média de casos positivos em concursos de admisSulsão para forças policiais no Brasil”, ressalta o presidente da Abratox.

IMPACTO
Para a assessora jurídica da Fenacat, Virgínia Laira, a implementação do exame toxicológico para os motoristas profissionais é de extrema importância para a sociedade, pois visa impedir o uso de substâncias psicoativas que causam dependência química e, consequentemente, colocam a vida de usuários das estradas em perigo.

“Recentemente, assistimos a um vídeo veiculado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) que abordou um motorista que havia utilizado o famoso rebit. Percebendo que estava muito agitado, tomou logo em seguida um calmante. Imagine o seu estado. Por muito pouco não aconteceu uma tragédia. O vídeo é deprimente. São várias as situações que causam a dependência, mas o importante, neste momento, é frear o consumo e, principalmente, oferecer tratamento e ajuda a quem tem a dependência”, enfatiza a assessora.

O presidente da Associação de Prevenção de Acidentes e de Assistência aos Amigos e Cooperados da Coopercemg (Apacoop), Rogério Batista do Carmo, também ressalta a importância do exame para a garantia da saúde e a preservação da vida de transportadores. “Para aqueles que questionam o valor do teste, enfatizo que a vida não tem preço. Se ele tivesse sido implementado há dois anos, tenho certeza de que o número de acidentes no trânsito seria bem menor hoje”.

Marcio Arantes, presidente da Associação Particular de Ajuda ao Colega (Apac) Sul, concorda e conta que as drogas alcançam todos os setores da sociedade. Sobretudo para os motoristas profissionais, a combinação do trabalho com substâncias psicoativas é fatal. “Observo a ampla disponibilidade de drogas e avalio que todos que dirigem deveriam fazer o exame”.


PARA TODOS
O exame toxicológico dos fios de cabelo pode detectar qualquer tipo de droga. Ele mostra qual substância foi ingerida, há quanto tempo a pessoa a consumiu ou a consome e a quantidade de droga usada.

O deputado Marquezelli diz que os parlamentares pretendem estender a todos os motoristas, não somente aos profissionais, a possibilidade de passarem pelos exames toxicológicos. “Queremos abrir isso para toda a população brasileira. Esse exame que colocamos no Brasil veio para ficar. O Contran prorrogou o prazo da obrigatoriedade do exame toxicológico de larga janela de detecção para 1º de janeiro de 2016. O órgão inova o ordenamento jurídico, sem legitimidade, no entanto. O prazo legal seria 2 de março de 2015”, explica.

Nesse sentido, ele apresentou, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Decreto Legislativo 114, que susta a resolução do Contran que prorrogou o prazo da exigência do exame toxicológico. Várias autoridades estão convidadas para participar da audiência entre os presidentes do Contran, Alberto Angerami; da Associação Brasileira de Laboratórios Toxicológicos (Abratox), Marcello Santos; da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme), dentre outros atores importantes nessa discussão.


FISCALIZAÇÃO

A efetiva mudança comportamental é um processo demorado e dependente de ações contínuas. Entre os comportamentos a serem modificados, a condução veicular sob o efeito de bebidas alcoólicas ou de outras drogas tem sido combatida pelos órgãos responsáveis pelo trânsito, como a Polícia Rodoviária Federal (PRF), em razão do potencial nocivo que tal prática representa para a segurança viária. O combate envolve tanto ações preventivas quanto repressivas.

A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e a PRF promovem cursos de Aperfeiçoamento em Técnicas para Fiscalização do Uso de Álcool e outras Drogas no Trânsito Brasileiro, fundamentado nos pressupostos da Política Nacional sobre Drogas e sobre o Álcool com o propósito de qualificar técnica e cientificamente os policiais rodoviários federais para uma atuação mais eficaz em suas ações relacionadas à associação do álcool e outras drogas no trânsito.

Diversas matrizes podem ser aplicadas na análise de drogas de abuso, como sangue, plasma, cabelo, urina ou fluido oral (saliva), tendo cada tipo de matriz características peculiares de coleta. Entretanto, segundo a PRF, quando se trata de amostras de trânsito, em que o objetivo principal consiste em demonstrar que o condutor estava dirigindo sob o efeito de determinada substância psicoativa, é amplamente reconhecido que a matriz mais apropriada é o sangue ou, alternadamente, o fluido oral. Embora o procedimento padrão para a triagem laboratorial em larga escala para o uso de drogas envolva a coleta de amostras de urina, essa matriz fornece informações retrospectivas sobre o uso de drogas (em média, sobre o uso de drogas nos últimos dois ou três dias), sem permitir a correlação entre a direção e a droga, encontrando-se limitações de aplicação em amostras de condutores.

“As políticas de fiscalização comprovadamente mais efetivas para diminuir os índices de acidentalidade no trânsito são: a redução do limite legal de álcool no sangue, principalmente para populações vulneráveis; o desenvolvimento de legislação clara referente ao consumo de outras substâncias; a testagem aleatória de condutores para álcool e drogas (...). A suspensão da habilitação e o uso de travas de ignição de álcool para condutores recidivistas também são exemplos de medidas que impactam a mudança do comportamento do condutor”, diz o Manual de Procedimentos Operacionais de Fiscalização do Consumo de Bebidas Alcoólicas e Outras Substâncias Psicoativas.




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