Piso mínimo não é tabelamento

Misturar os conceitos tornou-se um argumento conveniente para aqueles que são contra a sobrevivência de profissionais que atuam no transporte rodoviário de cargas

Capa / 17 de Março de 2020 / 0 Comentários
A- A A+

O julgamento de três ações referentes à constitucionalidade do piso mínimo do transporte rodoviário de cargas é mais um capítulo da longa trajetória em torno da implementação de um valor de frete que reflita os custos operacionais do serviço prestado. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, relator do processo, decidiu adiar mais uma vez a análise, atendendo a um pedido da Advocacia-Geral da União (AGU), que solicitou a realização de mais uma audiência – marcada para 10 de março – no gabinete de Fux como última tentativa de buscar a conciliação entre governo, caminhoneiros e empresários.

As ações de números 5.956, 5.959 e 5.964 contestam a constitucionalidade da Política Nacional de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas (PNPM-TRC), instituída pela Medida Provisória 832/2018 e convertida na Lei 13.703/18 e na Resolução 5.820/2018 da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Esse instrumento, que continua em vigor, tem o objetivo de “promover condições razoáveis à realização de fretes no território nacional, de forma a proporcionar a adequada retribuição ao serviço prestado”, conforme consta no artigo 2º da lei. De acordo com o texto, o processo de fixação dos pisos mínimos de frete deverá ser técnico, ter ampla publicidade e contar com a participação de representantes dos embarcadores da mercadoria, dos contratantes dos fretes, das cooperativas de transporte de cargas e dos sindicatos de empresas de transportes e de transportadores autônomos de cargas. Caberá à ANTT regulamentar essa participação. A agência também será a responsável por publicar a tabela com os preços mínimos referentes ao quilômetro rodado por eixo carregado, consideradas as especificidades das cargas.

No entanto, a Associação do Transporte Rodoviário de Cargas do Brasil (ATR Brasil), a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) alegam que a tabela fere os princípios constitucionais da livre concorrência e da livre iniciativa, “sendo uma interferência indevida do governo na atividade econômica”.

 “É importante diferenciar tabelamento de piso mínimo de frete. Aqueles que não querem que a lei prospere falam que existe um tabelamento e que ele vai contra a livre concorrência e a liberdade de mercado. Porém, a pauta se refere à plena implementação de uma política de piso mínimo para que o caminhoneiro não seja explorado”, afirma o presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto), Carlos Roesel.

Ele acrescenta que o transportador está sujeito a uma série de obrigações fiscais, tributárias e trabalhistas e de normativas que impactam diretamente o custo operacional da atividade. Nesse sentido, contar com uma política que ofereça um norte quanto ao frete mínimo é uma questão de sobrevivência, na avaliação de Roesel.

“O adiamento [da análise] mostra que o STF e o governo levam a sério o diálogo para a tomada de decisão. Contudo, é importante debater [o tema], retirando essa névoa referente ao tabelamento. O foco deve ser o valor mínimo para a prestação de serviços pelos profissionais do transporte rodoviário de cargas”, ressalta o presidente do Sintrauto.


Contexto

A política de piso mínimo foi uma das reivindicações dos caminhoneiros que paralisaram as atividades em 2018. Segundo Plínio Nestor Dias, uma das referências do setor de transportes – atualmente licenciado da presidência do Sindicato dos Transportadores Autônomos de Carga de São José dos Pinhais (PR) –, porém, ela já vem sendo pleiteada pela categoria há mais de 20 anos.

Em 1999, surgiu a necessidade de definir os custos mínimos do setor. Nos anos seguintes, essa demanda continuou, mas a criação de um parâmetro não teve avanços. Em 2015, caminhoneiros suspenderam os trabalhos por cerca de duas semanas. Estradas em todos os Estados do país foram bloqueadas com o objetivo de pressionar o governo a reduzir os preços do diesel e do pedágio, além de definir um piso para os fretes e mudanças na legislação que flexibilizassem a jornada de trabalho. A categoria defendia a liberação de mais horas trabalhadas por dia para aumentar os ganhos. Presidente da República naquela época, Dilma Rousseff (PT), então, sancionou sem vetos a Lei dos Caminhoneiros (13.303/2015) como resposta ao movimento grevista.

O presidente da Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat), Luiz Carlos Neves, enfatiza que a PNPM-TRC é um instrumento para orientar o frete, pois estabelece um piso para diversos segmentos do transporte rodoviário. “Quando um agricultor precifica a produção, ele coloca todos os insumos utilizados, e, normalmente, há estabelecido um preço mínimo para a venda do produto agrícola. Esse é um dos exemplos dos setores produtivos que aplicam o custo, e estabelecer um piso para a venda é legítimo”, diz.

Neves acrescenta que o transportador autônomo é mais fragilizado, porque está vulnerável a aceitar a prestação de serviço com menor preço. Ao se estabelecer um piso mínimo, ele terá um parâmetro. “Porém, a política pode ser aprimorada, especialmente em um contexto em que o governo federal investe em outros modais, como o ferroviário e o aquaviário. O setor rodoviário enfrenta sérios problemas estruturais, e, ao se diminuir a demanda por serviços, eles vão se agravar. É fundamental ter na ponta do lápis os custos operacionais, e, por isso, acredito na força das cooperativas e das associações de transporte para oferecer suporte aos autônomos”, pontua o presidente da Fenacat.

Atualização

O DNA da PNPM-TRC é refletir os custos totais do transporte em todo o território nacional, com prioridade para as despesas com óleo diesel e pedágios. Desde que ela foi implementada, houve ao menos seis reajustes, sendo apenas o primeiro de queda (de 20%), em junho de 2018.

Em 20 de janeiro último, novos critérios foram incluídos na política. A atualização atendeu a reivindicações de caminhoneiros que apoiaram a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido). Em abril do ano passado, para conter a insatisfação da categoria e evitar uma nova paralisação, o presidente anunciou um pacote que inclui R$ 2 bilhões em obras rodoviárias e o lançamento de uma linha de crédito para caminhoneiros autônomos, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, que chegará a R$ 500 milhões. O conjunto de medidas não abrangeu, contudo, a decisão sobre o preço do diesel, depois de Bolsonaro ter barrado um aumento anunciado pela Petrobras – e recuado da decisão após críticas de intervencionismo e da desvalorização da empresa na bolsa.

Entre as novidades do pacote da União estão a categoria única para as cargas a granel pasteurizadas e também a obrigatoriedade de pagamento do frete de retorno para os caminhões que não podem realizar novos fretes ao voltarem para o ponto de partida. As frotas que transportam combustíveis estão entre as que foram beneficiadas pela medida. As cargas consideradas de alto desempenho (aquelas que levam menor tempo para carga e descarga) ganharam uma tabela própria, na qual a jornada de trabalho foi ampliada para três turnos, o que exclui a pernoite no cálculo de diárias (o tema foi detalhado em outra matéria desta edição da Entrevias).

Pelas novas regras, “não entram no cálculo do piso mínimo a margem de lucro do caminhoneiro, custos com pedágios e relacionados às movimentações logísticas complementares ao transporte de cargas com uso de contêineres e de frotas dedicadas ou fidelizadas e também despesas de administração, tributos e taxas. Esses itens serão negociados entre caminhoneiros e embarcadores para compor o valor final do frete”, determina a nova norma da ANTT.

Outro tema presente na resolução da agência reguladora é o detalhamento da multa para quem contratar o serviço abaixo do piso mínimo. “A pena a ser aplicada é de duas vezes a diferença entre o valor pago e o piso devido, sendo que é de, no mínimo, R$ 550 e de, no máximo, R$ 10.500. Já quem ofertar a contratação do transporte rodoviário de carga abaixo do piso mínimo poderá ser multado em R$ 4.975”, prevê o regulamento.

Em nota, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos afirmou que avalia as novas regras positivamente. A criação dos custos de diária e a revisão nos valores de insumos, como pneus e manutenção, eram uma reivindicação da categoria.

 

Aplicabilidade

Apesar da atualização das diretrizes da política de piso mínimo, o último levantamento da NTC&Logística revelou uma defasagem média de 13,9% no frete recebido pelo transportador em relação ao custo. A disparidade é de 9,6% nas operações com transporte de cargas fracionadas e de 18,7% naquelas com cargas-lotação ou fechadas.

“Constata-se que muitos usuários não remuneram adequadamente o transportador em relação aos serviços complementares ou adicionais. Enquadram-se nessa categoria, por exemplo: a cubagem da mercadoria, a cobrança da Emex [Taxa de Emergência Excepcional] para regiões que se encontram em estado de beligerância, a TRT [Taxa de Restrição ao Trânsito] para as regiões metropolitanas que possuem restrição à circulação de caminhões, os serviços de paletização e guarda/permanência de mercadorias, o uso de escoltas e planos de gerenciamento de riscos customizados, o uso de veículos dedicados, entre outros. É importante realçar que, muitas vezes, os custos adicionais com esses serviços são superiores ao do próprio frete, porque se trata de uma situação crítica, que precisa ser resolvida entre as partes”, informou a NTC&Logística.

“As grandes empresas que são contra uma tabela de custo mínimo têm vantagens no mercado na compra e na venda de caminhões, possuem estrutura fiscal para driblar impostos e remuneram mal os motoristas. Não existe uma gerência tão eficaz capaz de reduzir o custo do transporte. Há, sim, vantagens para entrar em um mercado de maneira predatória, que quebra os autônomos e as pequenas empresas. Isso tem que acabar. Se outros setores não trabalham abaixo do custo, por que no transporte de cargas via terrestre tem que ser diferente?”, questiona Geraldo Eugênio de Assis, presidente do Sindicato das Associações de Auxílio Mútuo dos Transportadores de Carga e de Pessoas do Estado de Minas Gerais (SindMútuo-MG), diretor da Fenacat e conselheiro do Sindicato das Empresas de Transporte de Carga do Centro-Oeste Mineiro (Setcom).

Nesse sentido, contar ao menos com uma política para balizar os custos é fundamental para a sobrevivência do transportador. Há um leilão de frete no mercado que não consegue absorver os reais custos para a execução do serviço. Para mudar esse cenário, é fundamental que os contratantes respeitem as diretrizes de piso mínimo para garantir o equilíbrio comercial, de acordo com representantes do segmento. 

Para o presidente da Associação Particular de Ajuda ao Colega (Apac) Sul, Marcio Arantes, mais do que nunca, é fundamental a união da categoria para garantir nos fretes o custo operacional mínimo. “A interpretação da tabela da ANTT requer atenção, pois são contempladas variáveis para compor o piso. Por isso, os caminhoneiros devem ter um plano de conhecimento desse instrumento e atuar em conjunto em favor da execução de um preço que não manche a imagem do setor”, ressalta.

O presidente da Associação de Proteção e Ajuda ao Colega (Apac) Norte, Jesus Gontijo de Andrade, reforça a importância de haver uma referência para garantir uma remuneração justa para os transportadores, o que não acontece sem a tabela. “Quando ela não existe, ocorre um leilão ao contrário, com a diminuição dos valores, e as grandes empresas vão só sucateando os caminhoneiros. Muitos estão endividados, tentando reverter a situação, mas, como o frete não cobre nem os custos, eles afundam mais e mais”, avalia.

A última atualização da PNPM-TRC conta com a emissão do Código Identificador da Operação de Transporte (CIOT) para todos os caminhões que transportam cargas no país, incluindo os de empresas com frota própria. A ANTT estendeu a obrigatoriedade do registro aos autônomos, e, assim, torna-se possível saber se todos estão cumprindo o piso mínimo.

AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Entrevias. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Entrevias poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.