Privatização resolve?

Especialistas e representantes do transporte rodoviário de cargas discutem se a venda da Petrobras pode, de fato, amenizar o impacto dos preços dos combustíveis na vida dos brasileiros

Capa / 22 de Dezembro de 2021 / 0 Comentários
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Um dia de cada vez. Essa frase nunca fez tanto sentido na vida dos profissionais do transporte e das empresas que atuam no segmento. A frequente variação nos preços dos combustíveis vem impossibilitando o planejamento das finanças e até a precificação do serviço, visto que o diesel representa uma diretriz importante para a composição dos custos do frete – entre 30% e 35% do valor total.

“Todos estamos sentindo muito as mudanças constantes nos preços dos combustíveis. A gasolina tem aumentado bastante, e, no caso do diesel, também há um impacto considerável, pois tem caminhão que faz um quilômetro por litro. Outro ponto importante é que as transportadoras conseguem administrar melhor as alterações no preço, pois têm contratos mais constantes. Já o autônomo, como eu, trabalha no limite”, analisa Claudemir Travain. O paranaense começou a trabalhar como motorista de truck aos 17 anos, e, atualmente, é uma referência em conteúdo digital com o canal Realidade de Caminhoneiro, no qual mostra o dia a dia dos profissionais com vídeos postados no YouTube e em páginas do Facebook e do Instagram. Ele conta que, diariamente, recebe reclamações dos estragos que o alto preço do combustível e a flexibilização constante causam ao setor.

Diante desse cenário, uma possível solução vem sendo ventilada: a privatização da Petrobras. Mas será que essa medida resolveria o problema? A Entrevias ouviu especialistas e representantes do transporte rodoviário de cargas (TRC) para saber quais são os caminhos apontados por eles para que haja uma melhoria na gestão da política de combustíveis do país.

A estatal foi fundada em 3 de outubro de 1953, no segundo governo do presidente Getúlio Vargas, e a ela ficou estabelecido o monopólio sobre as atividades ligadas à pesquisa, à exploração, ao refino e ao transporte do petróleo. O governo do presidente Gaspar Dutra, que antecedeu o retorno de Vargas ao poder, era favorável à inclusão de empresas estrangeiras privadas no projeto de exploração da matéria-prima no país. Contudo, o grupo nacionalista defendia o monopólio estatal
e criou a Campanha do Petróleo, que ficou conhecida pelo slogan “O petróleo é nosso”. A iniciativa teve grande apoio de diversos setores, e a empresa iniciou oficialmente as atividades em 10 de maio de 1954.

“Observo que, hoje, esse discurso não faz sentido. A Petrobras, que nasceu com o objetivo de ser patrimônio dos brasileiros, atualmente, visa somente à lucratividade. Os valores praticados pouco se preocupam com a garantia das condições de vida da população. A empresa tem que ter em mente que o combustível é um gatilho, ou seja, ele impacta toda a economia, todas as finanças da sociedade”, critica Travain.

O presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto/MG), Carlos Roesel, também discorda da narrativa de que a “Petrobras é nossa”. “O governo brasileiro tem sócios acionistas. Portanto, trata-se de uma empresa estatal de economia mista. Sendo assim, o que pode ser feito é passar, em parte ou por completo, o controle e as ações pertencentes à União para a iniciativa privada. No entanto, a meu ver, isso em nada ajudaria a conter a escalada dos preços ou a reduzi-los, pois seria algo que prejudicaria os acionistas”, pondera Roesel.

 

Concorrência benéfica

Por outro lado, os representantes do TRC destacam que a ampliação da rede de fornecedores de combustíveis é uma medida que poderia melhorar a precificação do produto. O monopólio da Petrobras garante a ela o estabelecimento do valor a ser comercializado, e, assim, os consumidores ficam à mercê dos preços por ela impostos.

“Há uma forte interferência estatal, pois a empesa domina o setor. Quando há companhias privadas em um mercado, a probabilidade de intervenção do governo é zero”, diz um dos sócios-diretores do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) Adriano Pires, que é favorável à privatização da Petrobras, desde que seja bem-feita. “É preciso muito estudo e inteligência na modelagem de negócios para vender a empresa. Não é um processo simples, pois é preciso garantir que o privado não fique com a posição dominante. Vamos lembrar da Eletrobras, que há quatro anos está em processo de privatização e somente no ano que vem deverá concluí-lo. É preciso fazer um modelo que estimule a concorrência no setor de petróleo e, assim, fomentar a concorrência e a oferta para os brasileiros”, emenda.

O especialista cita também o exemplo da comercialização da BR Distribuidora em meados deste ano. A Petrobras vendeu os 37,5% que ainda detinha por R$ 26 cada ação, totalizando R$ 11,36 bilhões. Com essa operação, a estatal marcou a saída total da empresa de postos de combustíveis.

De acordo com Pires, além da retomada econômica, que pode puxar a demanda na distribuição, existe a perspectiva de novos cortes de custos no futuro, beneficiando as margens da empresa petrolífera e abrindo espaço para a administração privada colocar um pouco mais de ousadia no negócio.

 

Pauta antiga, mas urgente

O debate da venda da Petrobras não é de hoje. Suscitada pela conjuntura econômica e política do país e por questões ligadas à própria empresa, como dívidas e escândalos, a privatização põe na mesa a discussão sobre a eficiência da gestão pública e as prioridades e atribuições do Estado. “A meu ver, o governo não tem que ser acionista da empresa. Ele tem outras funções essenciais. A União deve regular, e não controlar a Petrobras”, opina Pires.

O presidente do Sindicato das Empresas de Transportes de Cargas e Logística do Estado de Minas Gerais (Setcemg) e vice-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Cargas do Estado de Minas Gerais (Fetcemg), Gladstone Lobato, concorda: “Somos a favor de um mercado livre, de livre concorrência. O Estado deve desempenhar um papel de fiscalizador, regulador, e não de investidor. Temos que caminhar para um modelo no qual o governo não seja mais operador nem gestor das empresas. Percebemos que, muitas vezes, o Executivo coloca nas empresas públicas pessoas que não entendem nada do ramo, mas que atendem aos seus interesses políticos imediatos, mostrando, dessa forma, a sua ineficiência na gestão de negócios”.

O representante do CBIE ressalta que passou da hora de se implementar o plano de privatização da Petrobras, pois a concorrência garantirá à população, especialmente aos transportadores, preços mais competitivos e de qualidade. “A sociedade não aguenta mais o impacto do custo de combustível e gás. Além disso, com a mudança da matriz energética, incentivada pelo fomento do uso de energias limpas e sustentáveis, mais do que nunca é o momento de se privatizar a Petrobras”, salienta Pires, adiantando que, daqui a 30 anos, o combustível fóssil valerá muito pouco.

O representante do Setcemg e da Fetcemg reforça que uma companhia de petróleo precisa ser competitiva, senão acaba morrendo, porque o negócio de exploração possui um grau de risco enorme. “Atualmente, o mundo é altamente dependente do petróleo, e com a gente não é diferente. O diesel é o combustível que move o país, seja o transporte de cabotagem, o aéreo, o ferroviário ou o rodoviário de passageiros e de cargas. Portanto, ter previsibilidade em uma política de preços será necessário. Então, acreditamos que a privatização da Petrobras seja uma medida necessária para se criarem as condições de crescimento para o país, trazendo autonomia para os negócios”, frisa Lobato.

O assessor técnico da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), Lauro Valdívia, corrobora quanto à importância da tomada de decisões céleres e bem-elaboradas para que não se percam oportunidades. “A privatização da Petrobras, se for bem-feita, amenizará o impacto da flutuação de preços, visto que a politica de precificação acompanha o mercado internacional. Nenhuma transportadora ou autônomo merece atuar em um cenário tão instável. É inviável negociar o tempo todo em função da variação do preço do combustível, especialmente em um setor que enfrenta problemas estruturais”, enfatiza.

Ele chama a atenção para o fato de que o TRC vem passando por mudanças no perfil de prestação de serviço por conta do crescimento do e-commerce. Hoje, apesar de não ser um movimento regulado, é possível perceber novos agentes na cadeia de entrega de mercadorias: pessoas físicas com carros próprios, bicicletas e até entregadores a pé. “Nesse cenário, são impostos novos desafios e uma concorrência desleal, que demandam cada vez mais profissionalização da categoria”, afirma Valdívia.

 

O agora

Enquanto não se bate o martelo quanto à privatização da Petrobras, os especialistas apresentam soluções de curto prazo. Para Gladstone Lobato, é essencial que haja uma revisão do cálculo tributário do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). “É preciso que ele deixe de ser ‘bitributado’. É necessário despolitizar a economia para que quem entende de negócios possa gerir com segurança, gerando lucros e, consequentemente, empregos e bem-estar social”.

O ICMS é recolhido pelos Estados e tem sido apontado como o culpado pela alta no preço da gasolina. O imposto é cobrado duas vezes, em momentos diferentes, surtindo um efeito cascata. O ICMS sobre os combustíveis não é fixo: o valor do tributo é calculado por um percentual aplicado sobre o preço (a alíquota). Por isso, quanto mais alto for o preço, maior vai ser o valor do imposto, mesmo que a alíquota não tenha mudado. O modo como o ICMS é cobrado é o que desperta críticas. Pela chamada “cobrança por dentro”, o valor acaba incluído no preço que é usado como base de cálculo para o tributo. Ou seja, o ICMS incide sobre ele mesmo.

Outra proposta é criar um Fundo de Estabilidade de Preços. “A Petrobras, nos três primeiros trimestres deste ano, teve aproximadamente R$ 23 bilhões de dividendos. Parte desse valor poderia ser destinada para garantir uma menor volatilidade do valor do combustível e para ofertar um ‘vale-gás’ a famílias de baixa renda. Hoje, as pessoas estão cozinhando com lenha e álcool, que podem causar graves acidentes”, diz Adriano Pires.

A modificação da atual política de combustíveis, que é baseada no valor do barril de petróleo no mercado internacional e na cotação do dólar, é mais uma sugestão. De janeiro a setembro, os preços de revenda registraram aumentos de 28% no diesel, 32% na gasolina e 27% no Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), segundo o Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. A perspectiva é de manutenção dessa tendência de alta devido às flutuações no preço internacional do barril de petróleo. “O combustível está alto no Brasil e no mundo. Contudo, no nosso país, ele sofre com a depreciação do dólar frente ao real e com outros fatores, como a crise financeira e o impacto da pandemia na atividade econômica. Nesse sentido, é importante revisar a política de preço”, conclui o especialista do CBIE.

 

 

Minientrevista com o presidente
do Sintrauto/MG, Carlos Roesel

 

A alta no preço dos combustíveis vem trazendo prejuízos para o setor de transportes. Na sua avaliação, a privatização da Petrobras poderia melhorar a situação ou agravá-la ainda mais?

Primeiramente, temos que deixar clara uma coisa: a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) é uma empresa de capital aberto (sociedade anônima), cujo acionista majoritário é o governo do Brasil (União), sendo, portanto, uma empresa estatal de economia mista. Pouca gente sabe, mas o Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro moveu uma ação civil pública por improbidade administrativa contra ex-integrantes do Conselho de Administração da Petrobras devido à política de manutenção dos preços da gasolina e do diesel em 2013 e 2014. Segundo o MPF, essa estratégia prejudicou a própria companhia. Justamente por causa dos acionistas não se pode vender os combustíveis abaixo do valor de mercado. No governo Dilma [Rousseff, PT], foi feito isso (entre 2013 e 2014), e muitos querem que seja feito hoje, mas essa contenção de preços gerou uma perda de R$ 100 bilhões. O cálculo inclui o que a companhia deixou de ganhar e o que gastou a mais em despesa financeira, fruto da ausência de paridade do combustível com os preços internacionais. Além disso, a extração e o refino do petróleo têm a maioria dos custos atrelada ao dólar, pois grande parte dos implementos e insumos utilizados nesses processos é importada em moeda norte-americana.

 

Quais caminhos o senhor sugere que sejam seguidos para amenizar a alta do combustível?

O caminho passa por políticas claras por parte do Legislativo e do Executivo, contenção de gastos, reformas estruturantes e grau de investimento. Realizadas essas medidas, o governo tem caixa para investir em infraestrutura, e os investidores começam a aportar dólares na economia. Devido à atual política de câmbio flutuante, a entrada de moeda internacional fará com que o dólar perca valor e, por consequência, haverá uma diminuição no preço do barril do petróleo para os brasileiros.

 

Que outras políticas públicas deveriam ser implementadas para garantir condições favoráveis aos transportadores?

As lideranças dos caminhoneiros, de uma forma geral, podem ser divididas em dois grupos: os de fato e os aventureiros de ocasião. Os que realmente fazem parte da categoria, na maioria dos casos, agem por impulso, pressionados pelo momento que estão vivendo, e não prestam atenção nos fatores que podem tirá-los de onde estão. Já os aventureiros de ocasião aparecem com o intuito de usar a causa e o nome dos caminhoneiros para tirarem vantagens apenas para si. As lideranças de fato não têm unanimidade em suas ações, e sempre o que se discute é se vão apoiar ou não uma greve. Na verdade, esse excesso de força leva a reações do Executivo e do Judiciário, pois temem a barbárie descontrolada. Com isso, cada vez mais, os caminhoneiros vão depender de construções e diálogos e menos da força bruta.

 

Por onde essas lideranças devem começar, no seu ponto de vista?

Inicialmente, podem-se unir todos que de fato representam os caminhoneiros em um grupo de discussão visando a políticas de enfrentamento dos problemas prioritários.

 

Na sua análise, privatizar a Petrobras não resolve o problema dos combustíveis. Qual é a solução para os caminhoneiros?

A Lei nº 13.703/2018 atribuiu à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a função de estabelecer os pisos mínimos referentes ao quilômetro rodado na realização de fretes, por eixo carregado, consideradas as distâncias e as especificidades das cargas, conforme consta no artigo 3º. Em decorrência da previsão legal, foram publicadas pela ANTT as resoluções que estabeleceram metodologias a serem aplicadas nos cálculos e as tabelas para diferentes tipos de carga (geral, a granel, frigorificada, perigosa e neogranel). Assim que foi promulgada, em 2018, a lei tornou-se alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Associação do Transporte Rodoviário de Cargas do Brasil (ATR Brasil) no Supremo Tribunal Federal (STF). A entidade argumenta que a legislação vai contra o direito à livre iniciativa e à livre concorrência. O relator da ADI, hoje presidente do STF, Luís Fux, decidiu que a constitucionalidade da norma será definida pelo Plenário em um julgamento ainda não marcado. Com esse cenário, em minha opinião, todas as lideranças, neste momento, de forma representativa e organizada, devem se unir e traçar uma estratégia conjunta para que essa ação seja julgada no Supremo. Assim, os caminhoneiros e os transportadores estarão livres dos transtornos referentes aos constantes reajustes no preço dos combustíveis, pois a lei tem previsão automática de reajuste nas tabelas de frete mínimo sempre que o óleo diesel subir de preço.

 

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