Profissionalismo e superação

Caminhoneiros com deficiência são exemplos de dedicação ao trabalho e ao sonho de seguir na estrada

Capa / 25 de Outubro de 2021 / 0 Comentários
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Alex da Silva Boscolo, 31 anos, natural de Campinas (SP), caminhoneiro. Plínio Pereira Junior, 36 anos, de Araranguá (SC), também transportador. Além da profissão, os dois compartilham uma história de resiliência e esperança: ambos são deficientes físicos por conta de acidentes de trânsito, mas não abandonaram as estradas e seguem cultivando o sonho de infância de rodar por todo o país.

Filho de mãe e pai caminhoneiros, Boscolo praticamente nasceu na boleia e sempre esteve envolvido com o universo do transporte, acompanhando as viagens dos pais e trabalhando como ajudante durante a adolescência. Aos 18 anos, ele se habilitou como motorista profissional e, aos 21, alcançou uma das primeiras realizações profissionais: um truck com cavalo mecânico para fazer viagens longas.

Cinco anos depois, em 2016, na cidade paulista de Piracicaba, o campinense sofreu um grave acidente. “Um caminhão me fechou, e, para evitar uma tragédia ainda maior, joguei o meu para o acostamento. Na hora, já tive o pé e parte da perna amputados. Como fiquei consciente o tempo todo, lembro-me de muito sangue. Orientei os socorristas a me levarem para um hospital particular com cobertura do meu plano de saúde próximo ao local da ocorrência. Foi Deus que estava comigo, não tenho dúvidas”, relembra o caminhoneiro.

Oito dias após o acidente, ainda internado, ele precisou amputar o joelho também. “A princípio, desanimei. Falei para o meu pai e para a minha esposa que eu tinha acabado com a minha vida, mas a equipe do hospital interviu e disse para eu levantar a cabeça. Então, saí de lá decidido a utilizar uma prótese e voltar a trabalhar no setor de transporte”, diz Boscolo.

Plínio Junior, também apaixonado por caminhões, tirou a carteira de habilitação profissional aos 19 anos e, além de atuar como transportador, seguiu carreira automobilística. Em 2019, aos 34 anos, ele sofreu um acidente no “arrancadão” – uma espécie de competição – do Campeonato Catarinense de Caminhão, e ficou paraplégico. “Perdi o controle, capotei e quebrei a coluna. Foram nove dias em coma. Foi um baque! É preciso muita determinação, além de força de vontade, para lidar com uma nova vida. O importante é entender que não acabou. É possível começar de novo”, ressalta.

E, de fato, Junior seguiu. O caminhão dele foi ajustado, e, hoje, ele conta com a ajuda da esposa, familiares e amigos para acessar a cabine. Já a família de Boscolo se mobilizou e conseguiu uma prótese para ele, que começou a trabalhar na adaptação do veículo 90 dias após o acidente.

 

Legislação

É importante destacar que motoristas com deficiência podem obter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) profissional e até mesmo ser habilitados em uma categoria especial, que descreve adaptações ou demandas do condutor e concede o direito a alguns benefícios, como, por exemplo, a isenção dos impostos sobre Produtos Industrializados, Circulação de Mercadorias e Serviços,  Operações Financeiras e Propriedade de Veículos Automotores, já que o documento comprova a necessidade de os condutores possuírem um veículo adaptado.

De acordo com a legislação brasileira, em especial a Lei 8.989/1995, 52 patologias estão incluídas na CNH especial: amputação de membros, artrite reumatoide, artrodese, artrose, ausência de membros, acidente vascular cerebral, acidente vascular encefálico, alguns tipos de câncer, cardiopatias, doença renal crônica, doenças degenerativas, doenças neurológicas, distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho, encurtamento de membros, esclerose múltipla, escoliose acentuada, falta de força, falta de sensibilidade, formigamento, hemiparesia, hemiplegia, HIV, lesão no manguito rotador, lesão por esforço repetitivo, sequelas físicas, linfomas, má-formação, mastectomia, membros com deformidades, monoparesia, monoplegia, nanismo, neuropatias diabéticas, ostomia, paralisia, paralisia cerebral, paraparesia, paraplegia, paresia, parestesia, Parkinson, poliomielite, problemas graves de coluna, prótese interna ou externa, quadrantectomia, síndrome do túnel do carpo, talidomida, tendinite crônica, tetraparesia, tetraplegia, triparesia e triplegia.

Nos casos em que o motorista se torna deficiente depois de tirar a carteira, é preciso fazer uma alteração na habilitação. Para tanto, o condutor passa novamente pelos exames médico e prático após preencher um formulário disponibilizado pelo Departamento de Trânsito Estadual (Detran) e pagar uma taxa.

 

Na prática

A principal diferença em relação à solicitação da carteira de motorista comum é que, para conseguir a CNH especial, o condutor com deficiência tem que passar por uma junta médica que examina a extensão da sua deficiência. Para ser válida, a análise deve ser marcada em uma clínica credenciada pelo Detran.

No exame prático, o veículo em que o candidato faz a prova – que pode ser o dele mesmo – é vistoriado por um perito. Se ele estiver adaptado, o teste é realizado normalmente. Quando aprovado, o campo de observações do documento é preenchido com a letra correspondente à adaptação necessária.

No caso de Boscolo e Junior, no entanto, a lei não foi aplicada com o respeito que eles merecem, bem como todos os motoristas com deficiência. O caminhoneiro paulista  demorou mais de cinco anos para conseguir voltar a atuar como transportador. “Foi um período de desrespeito, humilhação e pouco caso. Foi necessário

 até judicializar a situação  para eu conseguir dirigir o meu caminhão novamente”, desabafa.

Ele conta que fez todas as adaptações necessárias no veículo, certificadas e aprovadas pelo Inmetro, o órgão regulador, e deu início ao processo de realização dos exames. “Primeiramente, o Detran alegou que não existe lei para motorista profissional com deficiência. Tive que mostrá-la para só então marcarem a minha avaliação médica. Chegando à clínica, de bate-pronto falaram que eu não estava apto, mas eu exigi a realização do procedimento. O médico me deu o laudo para a parte prática, mas disse que ela deveria ser feita em um caminhão automático. Insisti que poderia fazer no meu, que era adaptado e certificado. Depois, falaram para eu ir a São Paulo (capital), pois não havia avaliadores pra deficiente físico motorista profissional”, lamenta Boscolo.

Além da série de impedimentos, o Detran de São Paulo perdeu a documentação dele, e foi preciso refazer todo o processo. Os problemas continuaram no momento do exame prático: ele foi cancelado uma vez por causa da chuva, e, em outra, o médico alegou que não gostava da adaptação do caminhão e negou a licença. Diante desses empecilhos, Boscolo resolveu acionar a Justiça solicitando uma liminar para a realização do exame, mas o advogado responsável pela ação cobrou pelo serviço e não deu andamento aos ritos processuais.

Paralelamente a todo esse imbróglio, o canal Realidade de Caminhoneiro, do motorista Claudemir Travain – importante parceiro da Entrevias –, mostrou a luta de Boscolo, que acabou sendo destaque também em outros veículos de comunicação. Assim, a situação chegou ao conhecimento da diretoria de CNH de Campinas. Contudo, devido à pandemia da Covid-19, o processo não avançou.

Em meados deste ano, uma amiga do caminhoneiro interveio junto ao advogado que havia ficado responsável pela judicialização do caso. A liminar saiu, e Boscolo, enfim, pôde fazer o exame prático. O teste ocorreu em vias que não eram adequadas para caminhões, mas ele realizou as manobras corretamente e teve a habilitação concedida com louvor no início de julho último, impressionando os examinadores. “O que tiro de lição? Usar a minha força de vontade e o fato de nunca ter desistido para incentivar as pessoas. Quero inspirar, ajudar no que for preciso, para que todos continuem seguindo e sorrindo. Não é fácil. Sinto dor e tenho feridas na perna, mas estou vivo, saudável e sou produtivo”, vibrou o motorista.

Junior também precisou ser resiliente para garantir o sonho de continuar dirigindo. “Corri atrás de tudo e vi que ninguém conhece ao certo os procedimentos. A lei existe, mas a aplicação dela é falha, e a estrutura não está preparada para colocá-la em prática”, lamentou.

Segundo o catarinense, ele não teve colher de chá: “No exame médico, o avaliador deu até um pulinho ao me ver, imaginando que eu não daria conta de dirigir. Abri o meu coração para ele, falei do meu sonho, que ainda tenho capacidade de dirigir, de contribuir para o setor e continuar produtivo”, revelou Junior, que, com habilidade e desenvoltura, conseguiu a habilitação especial.

“Sou grato e, agora, tenho o desafio de ser o primeiro piloto paraplégico a disputar uma prova no Campeonato de Caminhões. Ficaria muito feliz se as empresas oferecessem oportunidade para que os motoristas com deficiência continuassem a trabalhar nessa função. Somos deficientes eficientes e capazes de desenvolver diversas atividades. Como projeto, sugiro que os Detrans tenham polos especializados para motoristas com deficiência, pois assim o processo seria mais ágil”, concluiu Junior.

A Entrevias contatou a assessoria de comunicação do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) para questionar os episódios relatados na matéria e para conhecer as iniciativas do órgão em prol da inclusão de motoristas com deficiência. No entanto, até o fechamento desta edição, nenhum representante do Denatran havia respondido.

 

Inclusão profissional

A legislação brasileira prevê a contratação de profissionais com deficiência de acordo com o porte da organização. A Lei 8.213/91 trata dos planos de benefícios da Previdência e dá outras providências para a inclusão profissional. Toda empresa com cem funcionários ou mais é obrigada a preencher o quadro de pessoal com 2% a 5% de beneficiários reabilitados e/ou pessoas com deficiência.

Em seus 30 anos de vigência, porém, a conhecida Lei de Cotas para Deficientes apresenta resultados aquém do esperado tanto pelo governo quanto pelas entidades que atuam na defesa dos direitos dos deficientes. De acordo com dados da Secretaria do Trabalho, vinculada ao Ministério da Economia, o percentual de contratações nunca passou de 1%.

Alguns fatores contribuem para esse cenário. As pessoas com deficiências classificadas como leves – em geral, membros amputados ou audição ou visão parcial – são as que têm mais facilidade para preencher as cotas. Com isso, as empresas tendem a deixar de fora do mercado de trabalho os deficientes mais graves por eles apresentarem impedimentos maiores do ponto de vista das corporações.

O investimento em infraestrutura e tecnologia para garantir a qualidade de atuação do profissional com deficiência também é um empecilho. Outro entrave diz respeito à interpretação do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). “Muitas vezes, há discordância entre o órgão e o médico da empresa na análise da capacidade de atuação do profissional. Há casos em que o INSS libera, mas a organização diz que ele não está apto. Nesse limbo previdenciário, é preciso acionar a Justiça do Trabalho”, frisou Alexandre César Aburachid, advogado especialista nas áreas trabalhista e tributária do escritório André Mansur Advogados Associados.

Vale ressaltar que os segurados do INSS incapacitados para o trabalho — temporária ou permanentemente — têm o direito de passar por um programa de reabilitação profissional custeado pelo instituto e ser reinseridos no mercado de trabalho com outra formação.

 

Aposentadoria

O advogado especialista em direito previdenciário Denis Rodrigues, que já atuou em mais de 2.000 processos junto ao INSS, apresentou um importante instrumento para garantir os direitos de caminhoneiros deficientes: a aposentadoria da pessoa com deficiência (PcD). “Esclareço, inicialmente, que ela é diferente daquela por invalidez. A aposentadoria da PcD é voltada para quem é deficiente e, mesmo com as dificuldades, consegue trabalhar. Já a por invalidez é destinada a quem possui incapacidade total e permanente para o trabalho, ou seja, a pessoa que está completamente inválida para a atividade laboral”, explicou.

De acordo com a Lei Complementar 142/2013, é considerada pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo – de natureza física, mental, intelectual ou sensorial – que, em interação com diversas barreiras, impossibilitam a sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Dessa forma, todo segurado nessa situação tem direito a requerer a aposentadoria junto ao INSS.

Rodrigues ressaltou que esse tipo de aposentadoria é classificado em tempo de contribuição e por idade de acordo com o grau de deficiência definido pelo instituto por meio de perícias médica e social (veja o gráfico acima).

Além das perícias, é exigida a apresentação de uma série de documentos, como a carteira e os contratos de trabalho, as cartas-frete e os laudos, as receitas e os exames médicos. “A reforma da Previdência não alterou a aposentadoria da pessoa com deficiência. A solicitação pode ser feita pelo portal Meu INSS ou pela central 135. Não é necessário um advogado para realizar o requerimento”, finalizou Rodrigues.

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