Quando a imprudência interrompe a liberdade
Praticantes do ciclismo tornam-se vítimas da falta de respeito de motoristas
A- A A+Para trabalhar, para passear, para garantir a sustentabilidade do planeta, por ser uma prática e/ou um transporte mais econômico. Independentemente da motivação, ciclistas concordam que a “magrela” é uma importante companheira, que proporciona liberdade, contribui para as saúdes física e mental do usuário, garante a preservação do meio ambiente e é aliada da mobilidade urbana.
No Brasil, na década de 2010, iniciou-se um movimento de ter mais bicicletas nas ruas. Era uma ação simples e direta: ciclistas experientes levavam iniciantes para pedalar na cidade de São Paulo. Com o passar do tempo, foram surgindo mais pessoas dispostas a colocar ciclistas de forma segura nas ruas. Nesse momento, veio o Bike Anjo. O grupo de São Paulo criou uma plataforma virtual para facilitar a comunicação de quem queria começar a pedalar e dos voluntários. Desde então, ganhou o Brasil com pessoas, método e conteúdo diferentes, mas com um objetivo central: mobilizar cada vez mais gente por meio da bicicleta para tornar o espaço público um ambiente chamativo, seguro e agradável para os ciclistas.
Tal expansão, no início de 2014, colocou em movimento mais de mil “bikes-anjo” em quase 200 cidades do país, e, com isso, começou-se a se organizarem atividades que pudessem aumentar ainda mais seu alcance. Mas, infelizmente, junto com o crescimento do uso da bicicleta por diversos objetivos, está a ampliação do número de ciclistas vítimas de acidentes.
A quantidade de vítimas fatais de acidentes de trânsito no Brasil tem se mostrado elevada, tendo passando de 35.281 em 1996 para 42.844 em 2010, o que retrata um aumento de 21,4% no período. As vítimas ciclistas, em 1996, representavam 0,9% desse total (326 óbitos). Em 2010, elevaram-se para 1.513 (3,5%), correspondendo a 364% de crescimento no período.
O engenheiro Annibal Theotonio Baptista Neto, de 47 anos, materializa a estatística. Desde criança, o ciclismo fez parte de sua vida. Recentemente, ele estava em uma cicloviagem com um amigo e, após oito dias pedalando, num percurso de mais de 500 km, no último dia, quando ambos partiram para destinos finais diferentes, aconteceu um acidente. “Passei por uma cachoeira em Morro do Pilar e segui em direção a Cardeal Mota, na Serra do Cipó. Pouco depois do Juquinha (ponto turístico famoso na região), fui pego de surpresa em um choque por trás. Creio que saí da estrada e perdi a consciência. Depois de algum tempo, eu me vi deitado, mas não conseguia ficar de pé. Cheguei a dar sinal para carros que passaram pela estrada, mas nenhum deles teve condições de me avistar, uma vez que, com o choque, saí da estrada, e a vegetação, provavelmente, me encobriu”. Apesar da perda da consciência, Annibal buscou se tornar visível e se lembra de um homem falando ao celular a respeito de uma ambulância.
Atualmente, Annibal está em tratamento, no qual deve permanecer nos próximos meses. Mas, mesmo assim, o esportista pretende continuar com a atividade: “Sou ciclista – inclusive urbano. Passo alguns apertos no trânsito de Belo Horizonte e acho que a ausência de educação no trânsito é o maior empecilho para a utilização da bike como meio de transporte. Por isso, deixo uma mensagem ressaltando mais respeito com a vida”.
A recepcionista Felícia Oliveira, 50 anos, também teve o “pedal” interrompido pela imprudência. Há dois anos, quando treinava na orla da lagoa da Pampulha, uma motorista entrou na contramão da via em que ela estava e a atingiu, levando-a bater em outro carro. “Tive fraturas no rosto e no corpo, e minha voz e meus dentes estão comprometidos até hoje. Eu estava no auge de minha forma física e madura no esporte e, com o acidente, tive que mudar toda a minha vida. Todos os dias são de superação agora”, relata.
Justiça
Felícia e Annibal estavam devidamente equipados. Ela não acionou a motorista que causou o acidente para reparação de seus danos físicos – despesas hospitalares e odontológicas – e materiais (sua bike era última geração). Annibal conta com a ajuda de colegas com o objetivo de apurar quem o machucou. “O ciclista pode recorrer à Justiça para solicitar seus direitos contra o Estado e contra motoristas que provocam acidentes. Toda e qualquer alegação deve associar a dinâmica do acidente (a forma como ocorreu) ao descumprimento de regras de circulação”, explica Marcelo José Araújo, advogado e ex-presidente da Comissão de Trânsito, Transporte e Mobilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná.
Araújo conta que é difícil mensurar o número de ações na Justiça imputadas por ciclistas, mas, com certeza, ele está muito aquém da quantidade de acidentes que ocorrem diariamente. “A premissa principal do Código de Trânsito no que tange à circulação de bicicletas e ciclistas é o ‘Princípio de Proteção’: veículos de maior porte são responsáveis pela segurança dos menores; os motorizados em relação aos não motorizados; e todos pelo pedestre. O ciclista engloba o porte frágil e a tração humana. Portanto, nessa pirâmide, o pedestre é a parte mais frágil”, diz.
O especialista ressalta que o “Princípio de Proteção” não afasta a responsabilidade de o ciclista cuidar de sua própria segurança, devendo ele não se expor a riscos desnecessários. “Apesar de o ciclista também ser passível do cometimento de infrações, ainda não foram encontradas formas de cobrar multa dele, assim como do pedestre”.
Arcabouço legal
Foi na segunda metade dos anos 1970 – ainda sob o efeito da crise do petróleo e observando-se os movimentos de retomada da bicicleta na Europa – que o governo federal brasileiro fez os primeiros investimentos e divulgações para a necessidade da implementação de políticas de mobilidade por bicicleta, a partir do Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes. Desse esforço, no início dos anos 1980, foram criados cinco volumes de um manual para o planejamento e o desenvolvimento cicloviário – até então inédito no Brasil.
Apesar dessas iniciativas, a lei que regia a circulação de veículos em território nacional (o Código Nacional de Trânsito, Lei 5.108) até 1997 carregava muitos equívocos relacionados à bicicleta: não reconhecê-la como um veículo dotado de características próprias e associá-la a motocicletas e a veículos de tração animal são alguns deles. Outra inadequação, muito comum ao se verificar o comportamento de ciclistas nas cidades, era a ausência de regramento para a circulação de bicicletas. Isso acarretou, por exemplo, a convenção da contramão como sentido natural da circulação de bicicletas, gerando muitos conflitos.
A nova versão do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503), promulgada em 1997, foi então um marco para o reconhecimento da bicicleta como veículo, incorporando algumas de suas especificidades e imputando a correta hierarquia de prioridades na circulação a partir das relações de força no trânsito.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 garantiu o direito de ir e vir em todo o território nacional e passou a obrigar, para municípios com mais de 20 mil habitantes, a elaboração de um Plano Diretor Estratégico. Isso fez com que os sistemas de circulação, trânsito e transporte das cidades tivessem que dialogar cada vez mais com o planejamento urbano, a ordenação territorial e os planos de habitação, uso e ocupação do solo.
Em 2001, foi criado o Estatuto da Cidade (Lei 10.257), que regulamenta esses instrumentos urbanísticos previstos na Constituição. Entre as inovações, ele estabelece uma agenda de participação social e passa a exigir, de municípios com mais de 500 mil habitantes, a elaboração de planos de transporte – incluindo a política de mobilidade urbana como um dos instrumentos de desenvolvimento urbano.
Bem mais recente é a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587), aprovada em 2012. Ela reforça a correta priorização dos modos ativos e coletivos de transporte e ainda estabelece prazos para que as cidades que têm acima 20 mil habitantes elaborem seus planos de mobilidade.
Descompasso entre as leis e sua aplicação
O arcabouço legal ainda não garante a implementação de um sistema cicloviário nos municípios brasileiros. Levantamento da Associação Nacional de Transportes Públicos com base no ano de 2012 mostra que o transporte individual motorizado em todo o Brasil ainda consome cerca de 80% dos recursos de mobilidade urbana.
Belo Horizonte, por exemplo, possui em torno de 2,4 km de ciclovias para cada 100 mil habitantes. Em 2014, ciclistas e prefeitura fizeram oficinas para identificar as rotas em que os ciclistas tinham costume de passar: as ciclorrotas. Os resultados ainda estão sendo analisados para, em seguida, virarem projetos urbanísticos.
Desde 2006, a capital mineira conta com um programa de mobilidade por bicicleta, o Pedala BH, que iniciou a implantação de ciclovias em 2011. Na época, o programa era exclusivamente governamental e sem a participação da sociedade civil. Por conta da insatisfação dos cidadãos com esse processo unilateral, após várias participações em audiências públicas, a elaboração de um relatório de avaliação de ciclovias, a implementação de ações de controle social e inserções midiáticas com caráter de denúncia, foi criada uma arena para a construção coletiva entre poder público (prefeitura/BHTrans) e pessoas interessadas no desenvolvimento da política pública de mobilidade urbana por bicicletas: o GT Pedala BH.
Esse grupo de trabalho se reúne há anos para tentar superar os desafios de promover o uso da bicicleta em uma cidade com alto índice de veículos motorizados individuais (carros e motocicletas).
Recentemente, o grupo recebeu retorno do prefeito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda, em que ele reconhece a legitimidade das demandas defendidas e indica que implantará mais 19 km de novas ciclovias e realizará a manutenção de outros 10 km. Também prometeu instalar os 400 paraciclos doados à prefeitura pela iniciativa privada.
Pedalar sempre… avante!
Não existe uma receita pronta para incluir efetivamente, com segurança e conforto, a bicicleta na mobilidade urbana. Os municípios brasileiros possuem características geográficas, demográficas, históricas e econômicas diferentes, cabendo a cada qual medidas específicas.
Entretanto, com base na experiência adquirida internamente e nos bons exemplos estrangeiros, e considerando-se a necessidade da implementação de políticas transversais e multissetoriais para o Brasil pedalar mais e melhor, em linhas gerais, são necessários incentivos aos trabalhadores de forma geral para utilizarem a bicicleta como meio de transporte e para a oferta de bicicletários adequados.
No que se refere à cadeia produtiva da bicicleta, os fabricantes devem oferecer garantia de qualidade, durabilidade e segurança das “magrelas”, bem como de seus componentes e acessórios, além de produtos acessíveis a todas as camadas socioeconômicas.
A população poderia reduzir o uso dos veículos automotores individuais para os casos de necessidade, cumprimento da legislação de trânsito e respeito à prioridade dos ciclistas e dos pedestres no trânsito. E, paralelamente, o poder público teria de aumentar a participação da bicicleta na mobilidade urbana, para reduzir o número de mortes de ciclistas no trânsito, contando, para isso, com ampla atuação social; promover o acalmamento geral do trânsito e construir infraestrutura cicloviária suficiente e com qualidade, visando ao conforto dos ciclistas, integrando-a às demais modalidades de transporte urbano; desonerar a cadeia produtiva da bicicleta e de seus acessórios; criar facilidades para a aquisição do veículo e implantar, na estrutura administrativa, setores para a gestão da mobilidade ciclística, associando-a a políticas educativas e fiscalizatórias. Todas essas ações alterariam a cultura da mobilidade urbana.
“As regras de trânsito têm por finalidade estabelecer a forma de convivência e o compartilhamento do espaço público entre todos os ‘atores’ do trânsito (veículos e pedestres). O respeito às normas de convivência culmina no atingimento da segurança. O grande desafio é fazer com que as regras sejam respeitadas, e os instrumentos são a educação e a punição. São fatores de mudança de comportamento. Especificamente em relação à circulação de bicicletas, as prefeituras, de forma geral, têm demonstrado maior preocupação com ciclovias e ciclofaixas, e, entre outros fatores, a Lei de Mobilidade Urbana também estabelece o objetivo de estimular a migração do veículo individual motorizado (automóvel) para o individual não motorizado (bicicleta) e para o coletivo motorizado. Não adianta depositar a responsabilidade apenas no poder público, cujo ideal nunca será atingido, apenas o possível, e digo isso por ter sido secretário municipal de Trânsito de Curitiba. Cada um tem sua parcela de responsabilidade”, ressalta o advogado Marcelo Araújo.
Circulação segura
Há várias razões para pedalar na mão correta, e todas elas visam à segurança. Um pedestre que vai atravessar a rua, naturalmente, somente olha para o lado de onde os carros vêm. Um veículo que vai entrar em uma rua ou sair de uma garagem ou vaga de estacionamento, também. Eles não esperam encontrar uma bicicleta vindo na contramão. Um carro fazendo uma curva à direita também não espera uma bicicleta na direção contrária, ainda mais no lado de dentro da curva. Um motorista que estacionou e vai abrir a porta olhará só no retrovisor para ver se pode abri-la, sem ter motivos para olhar para a frente.
A velocidade com que o ciclista se aproxima de um carro é muito maior quando está na contramão por ela ser a soma das velocidades dos dois veículos. Por exemplo, a 20 km/h, e o carro a 40, o ciclista estará se aproximando dele a uma velocidade relativa de 60 km/h. O motorista terá bem menos tempo para reagir à sua presença e desviar. Se, nesse mesmo exemplo, o ciclista estiver no mesmo sentido do carro, a velocidade relativa entre ambos será de apenas 20 km/h.
Outro cuidado é com as portas dos carros parados. Muitos motoristas olham no retrovisor, procurando o volume grande de um carro, e acabam não vendo a “magrela” chegando, principalmente à noite. Por isso, o ciclista deve ficar a uma distância que seja suficiente para que uma porta que estiver se abrindo não o derrube. É preciso se manter a pelo menos um metro dos carros parados, tentando-se imaginar até onde iria uma porta aberta. De preferência, o ciclista deve ocupar a faixa seguinte. Nem sempre é possível perceber uma pessoa dentro de um carro parado. Então, é melhor não arriscar.
O ideal é andar sempre pela direita. Em alguns casos, pode ser melhor usar a esquerda quando a via é de mão única, mas são raras as exceções. Andar pela faixa da direita é mais seguro por ser a área destinada aos veículos em menor velocidade.
O ciclista não deve se posicionar muito no canto, senão os carros tentarão passar na mesma faixa, mesmo não havendo espaço para fazer isso em segurança. O Código de Trânsito obriga os motoristas a passarem a 1,5 metro dos ciclistas, mas muitos não sabem disso ou não entendem a importância da distância de segurança.
Sinalizar as tomadas de decisão é: pedir ou dar passagem, avisar que o motorista pode passar quando se decidir esperá-lo e também quando entrar na frente (e esperar para ver se ele vai parar mesmo), além de preferir andar em ciclovias e em ciclofaixas. Em horários de pico, pode ficar mais difícil trafegar nas avenidas. Há pouco espaço sobrando, obrigando o ciclista a usar o corredor, e sempre há alguns motociclistas impacientes. Para piorar, quando o trânsito anda 100 m, os condutores de veículos tentam recuperar todo o atraso nesses poucos segundos, buzinando e acelerando atrás do ciclista, como se fosse ele o responsável pelo congestionamento.
A escolha da rota é um item relevante de segurança. Um exemplo é procurar ruas menores, que os carros evitam por precisarem parar a cada esquina em razão de lombadas, valetas ou muitos semáforos. É importante o condutor da bike não pensar no trajeto como se estivesse de carro: o que é ruim para os motoristas costuma ser bom para ele. Se não souber que caminho fazer, o ciclista deve procurar companheiros de 'magrelas' que sejam experientes no uso das ruas. Como regra, se a pessoa que estiver guiando a bicicleta sentir medo de pedalar em certa avenida, melhor não fazê-lo.
Também é importante não passar no sinal vermelho com a bike, pois pode aparecer um carro em alta velocidade na transversal. Tomar cuidado nas saídas à direita é essencial também. De vez em quando, um carro que está na segunda pista vira rápido porque se lembrou disso na última hora ou porque não o deixaram mudar de pista antes. Quando calcula se vai dar tempo, o motorista só analisa os carros que estão vindo, pressupondo que a bicicleta é muito lenta e que haverá tempo para passar à frente dela. Por isso, quando o ciclista vir que muita gente vira em algum lugar à direita, ele deve sinalizar com a mão que seguirá em frente e se certificar de que nenhum carro vai virar mesmo assim.
Outras atitudes que o condutor da bike deve evitar são fazer zigue-zague, entrar sem olhar numa avenida e mudar de pista sem sinalizar, ainda que o motorista mais próximo esteja lá atrás.
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