Queimadas e neblina: combinação fatal
A soma dos dois fenômenos a uma série de desacertos resultou em um acidente grave na BR-277 em São José dos Pinhais. Oito pessoas morreram.
A- A A+“Meu Deus, como ficarei sem as minhas duas filhas? Como falo isso para a minha esposa?”. O vídeo de um pai desesperado viralizou, na noite de 2 de agosto último, durante um engavetamento ocorrido na BR-277, na altura do KM 77, em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba (PR). Segundo o Corpo de Bombeiros, oito pessoas morreram e mais de 20 ficaram feridas no acidente, que envolveu 23 veículos.
Tudo começou com uma colisão sem gravidade entre uma motocicleta e uma viatura da Polícia Militar (PM). Com a pista interditada para o atendimento à ocorrência, os carros que vinham logo atrás precisaram parar no acostamento. De acordo com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), embora eles tenham ligado o pisca-alerta, o motorista de um caminhão não conseguiu ver o que acontecia na rodovia, já que a visibilidade foi prejudicada pela combinação de neblina e fumaça vinda de uma queimada na região. O veículo pesado, então, atropelou as pessoas que aguardavam às margens da pista e saiu arrastando automóveis e motocicletas. Outros veículos que vinham atrás também colidiram.
“Foi um acidente muito grave. Pessoas que estavam no local relataram uma cena de terror: moto voando com o impacto e o caminhão avançando sobre os carros e em um ponto de ônibus. Sem dúvida, uma situação triste que expôs pontos importantes:
excesso de confiança do motorista e tomadas de decisões erradas dos órgãos de assistência”, critica o transportador autônomo Claudemir Travain, criador do canal Realidade de Caminhoneiro.
Na avaliação dele, o condutor do caminhão provavelmente foi confiante demais, já que conhecia bem o trajeto. “Meu objetivo não é mostrar culpados, pelo contrário, é discutir situações para evitar acidentes. Contudo, como é uma região que tradicionalmente apresenta neblina, e teve ainda a fumaça de queimadas próximas, era preciso reduzir muito a velocidade, mas não foi o que aconteceu. Além disso, houve negligência, pois a concessionária deveria ter interditado antecipadamente o trecho ao identificar a fumaça. As queimadas já estavam acontecendo havia dias. Já a PM deveria ter orientado as pessoas a buscarem um local seguro. Em vez disso, elas saíram dos veículos e acabaram sendo atropeladas”, diz o motorista.
Em nota, a assessoria regional de comunicação da Polícia Rodoviária Federal assegurou que, “ao chegar ao local, a PRF reforçou os trabalhos de sinalização e orientação do trânsito que já estavam sendo feitos por equipes da concessionária e do Corpo de Bombeiros”.
RECORRÊNCIA
O trecho da rodovia em que aconteceu o acidente é administrado pela Ecovia, do grupo EcoRodovias. O gerente de atendimento ao usuário da concessionária, Marcelo Belão, conversou com a reportagem da Entrevias. Ele contou que, entre 25 e 27 de julho, foram identificados focos de incêndio fora da faixa de domínio da rodovia. Segundo ele, funcionários da empresa, militares do Corpo de Bombeiros e agentes da PRF fizeram intervenções nesses pontos. “Todo o incêndio foi extinto. Porém, no dia do acidente, devido a uma especificidade da vegetação da região, o processo de combustão continuou no solo, gerando fumarolas. O vento as levou para a rodovia e, associadas à neblina, comprometeram a visibilidade. Identificamos esse fenômeno e, prontamente, encaminhamos uma equipe para ajudar na sinalização da pista que tinha maior fluxo no momento. No entanto, o engavetamento aconteceu no sentido contrário”, afirmou Belão.
O gerente destacou que nunca havia presenciado uma situação parecida. “O que ocorre naquele local é uma combustão lenta e gradual sem a presença de fogo. Por conta da atual estiagem no Paraná, o solo se mantém seco e segue liberando constantemente uma fumaça. Combinada com o nevoeiro, que é típico das regiões úmidas e de várzeas, essa fumaça produziu na noite do dia 2, pela primeira vez, uma superneblina, fenômeno atípico, inusitado e que não havia sido registrado na concessão anteriormente, interferindo na visibilidade”, explicou.
A excepcionalidade descrita por Belão, contudo, causa surpresa, visto que há mais de 20 anos a concessionária atua na região. Além disso, o Paraná – assim como acontece em outras partes do Brasil – enfrenta anualmente estiagens nesta mesma época. Em 17 de julho (data em que é celebrado o Dia de Proteção às Florestas), inclusive, a Ecovia fez uma campanha para alertar sobre os riscos de queimadas. A empresa afirmou que, somente nos últimos meses, equipes atuaram em 30 princípios de incêndio ao longo dos trechos concessionados. “Os meses de julho e agosto historicamente são os mais críticos por serem os mais secos. Por isso, a concessionária está redobrando os cuidados e o monitoramento”, disse à época.
Informações compiladas pelo Sistema Digital de Dados Operacionais do Corpo de Bombeiros paranaense mostram que, desde o começo deste ano, foram registrados 6.425 casos de incêndio em vegetação, sendo 1.145 às margens de rodovias – uma média de um a cada quatro horas e meia. Em São José dos Pinhais, foram 22 ocorrências nas proximidades das BRs 116, 277 e 376.
DEPOIS DA TRAGÉDIA
Entre os dias 3 e 4 de agosto, a PRF e a Ecovia precisaram interditar a BR-277 novamente, no mesmo trecho da ocorrência anterior, por causa da fumaça e da falta de visibilidade. A interdição durou aproximadamente três horas e se estendeu por dois quilômetros nos dois sentidos da rodovia.
A medida foi tomada para evitar novas tragédias e, segundo o gerente de atendimento ao usuário da concessionária, não houve diferença entre os protocolos adotados no dia do acidente e nos dias seguintes.
INVESTIGAÇÕES
O Departamento de Estradas de Rodagem paranaense (DER-PR) e a Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Paraná (Agepar) pediram informações à Ecovia sobre as causas do engavetamento. A Polícia Civil também investiga o caso “com total apoio e cooperação por parte da PRF, que trabalha na constante revisão de seus procedimentos, a fim de reduzir a ocorrência de acidentes. A partir desse caso, especificamente, estamos buscando reforçar a divulgação das orientações de condução em situações de restrição de visibilidade por todos os canais aos quais temos acesso”, assegurou a assessoria da PRF.
A Agepar informou que solicitou imagens das câmeras que registram o fluxo na rodovia e está monitorando os levantamentos para apurar as causas da série de colisões. Já a Sulista, empresa para a qual o motorista do caminhão prestava serviço, afirmou que, no momento do acidente, ele iniciava uma viagem para São Paulo após um fim de semana de descanso com a família. Logo depois do ocorrido, uma equipe da empresa se deslocou para o local para prestar assistência ao profissional.
A Polícia Civil informou que está analisando as condições do condutor do caminhão e as informações do tacógrafo do veículo.
AÇÃO E REAÇÃO
Em um artigo científico, o biólogo Romildo Gonçalves, especialista em queima controlada e planejamento ambiental, explica que é fundamental analisar os efeitos do fogo. “Quando ocorre um incêndio, a temperatura das camadas superficiais do solo sobe. A taxa e a profundidade reais do aquecimento dependem da quantidade de umidade e do tipo de incêndio. Durante uma queimada na superfície, as temperaturas quase sempre excedem os 100°C e podem subir a até 720°C por curtos períodos de tempo”, detalha Gonçalves.
No caso das rodovias concedidas, as concessionárias precisam seguir as Diretrizes Básicas para Elaboração de Estudos e Projetos Rodoviários estabelecidas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Conforme previsto no documento, as empresas devem “definir e coordenar o conjunto de princípios, normas, tarefas e seus executores que tem por fim a implantação das ações/atividades previstas pelo plano ambiental. Para maior objetividade, o gerenciamento ambiental deve envolver três componentes básicos: supervisionar, fiscalizar e monitorar”.
As diretrizes também determinam a necessidade de se fazer “o mapeamento geológico da área estudada, indicando as ocorrências de materiais de construção e as informações preliminares, as zonas de solos talosos, as zonas de sedimentares recentes e as zonas de instabilidade que necessitem de estudos especiais de estabilização com caracterização da natureza do material”. O Dnit orienta ainda que o projeto contenha a descrição geológica da região estudada, detalhando a situação geográfica, o clima, o solo e a vegetação.
AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Entrevias. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Entrevias poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.