Sistema descarrilhado
Malha ferroviária é o retrato da falta de investimento em mobilidade urbana. População sofre com abandono e insegurança
Custo de construção de apenas 1 km de ferrovia é de cerca de R$ 3 milhões, sem contar pontes e viadutos. Um trem abandonado causa um vultoso prejuízo financeiro
O trem faz parte da história econômica, social e cultural do Brasil, principalmente para Minas Gerais. Os trilhos que costuraram encontros, promoveram transporte de mercadorias e oportunidades enfrentam o desafio de sobrevivência. Dos 28.190km da malha ferroviária nacional, um terço é produtivo, transportando minério, e os demais estão subutilizados. No período imperial, a linha férrea tinha um terço da extensão atual, mas sua ocupação era equivalente.
EXTENSÃO DA MALHA FERROVIÁRIA – 2013 (EM KM)
Fonte: ANTT
Recursos vultosos e longo prazo para a execução das obras são as principais razões da falta de investimento no setor ferroviário. Segundo estimativas da Associação Nacional de Transporte Ferroviário (ANTF), o custo de construção de apenas 1 km de ferrovia é de cerca de R$ 3 milhões, sem contar pontes e viadutos. Se comparado com a elaboração de uma rodovia, esse valor é sete vezes maior. A construção também leva mais tempo: em seis meses abrem-se 500 km de estradas de terra, e a mesma extensão de ferrovia leva cinco anos.
Esse cenário fez o governo mudar os rumos e colocar em segundo plano o modal férreo. Em 1992, iniciou a transferência das malhas para a iniciativa privada, durante um período de 30 anos, prorrogáveis por mais 30. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) fiscaliza 12 concessões ferroviárias. A iniciativa privada arrendou com o intuito de focar somente no transporte de carga; 80% dos mais de 50 mil imóveis pertencentes à extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) não estavam registrados e não foi realizado sequer um inventário dos bens.
Visando ampliar a escala de investimentos públicos e privados em infraestrutura ferroviária, rodoviária, hidroviária, portuária e aeroportuária, o governo federal lançou em 2012 o Programa de Investimentos em Logística (PIL). Em linhas gerais, a iniciativa busca restabelecer o planejamento integrado dos transportes, de forma a implantar uma rede de infraestrutura de transporte moderna e eficiente, capaz de prover maior competitividade ao país, bem como fomentar o desenvolvimento econômico e social.
Carros e trens disputam espaço
No modal ferroviário, o PIL busca, essencialmente, expandir a capacidade de transporte da malha ferroviária nacional, resgatar a ferrovia como alternativa logística e reduzir quantidade de fretes. Para isso, buscou-se desenvolver um modelo de exploração capaz de propiciar amplo acesso à malha ferroviária, de forma que diversos setores da economia possam usufruir da infraestrutura ferroviária.
RADIOGRAFIA DO SETOR
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) avaliou esse programa e os principais marcos regulatórios recentes da malha ferroviária brasileira. No estudo o instituto analisou o setor desde 1997, quando o sistema foi quase integralmente repassado à administração privada, por meio de concessões. De acordo com o texto, os investimentos privados na recuperação da malha, modernização de locomotivas e vagões totalizaram aproximadamente R$ 37 bilhões entre 2002 e 2012.
O retrato do abandono
O PIL estabeleceu como meta a construção ou melhoria de 10 mil km de estradas de ferro e, para isso, seriam necessários R$ 91 bilhões.
Paralelamente, a participação percentual do transporte por ferrovias, na matriz brasileira de transporte de carga, passou de cerca de 15%, à época das concessões, para algo em torno de 25% na atualidade – a estimativa é de que atinja 35% no final da década de 2020.
Acidente entre trem e carro
Contudo, apesar dos avanços, o modelo de regulação econômica preconizado nos contratos apresentou pontos falhos, como: não estimular um maior nível de investimentos, não propiciar melhor utilização da malha ferroviária em toda a sua extensão e não permitir maior concorrência entre as concessionárias, principalmente por conta das restrições à utilização de instrumentos como o Direito de Passagem e o Tráfego Mútuo.
Outro problema apontado pelo estudo refere-se à devolução de trechos pouco produtivos pelas concessionárias ao poder concedente. Em alguns casos, ao fim dos contratos, o patrimônio pode ser devolvido à União no mesmo estado de conservação em que foi entregue às concessionárias.
Pátio ferroviário abandonado
RAIO-X EM MINAS
O trem é intrínseco à história de Minas Gerais, sendo fator comum no imaginário, na linguagem e na cultura. Porém, vem perdendo espaço. Devido à ausência de utilização, após 17 anos sob sua concessão, a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) devolverá à União 3.800 km de estradas de ferro por falta de viabilidade econômica. Um dos trechos, entre Sabará e Miguel Burnier, com 84 km de extensão, está aos pedaços. Nestas duas últimas décadas, foi saqueado e sofreu com a falta de cuidados, segurança e manutenção, que estavam a cargo da FCA.
Estação Eugênio de Melo retrata os anos de abandono da ferrovia brasileira
Incluindo trechos da Vale e MRS, somente na região metropolitana de Belo Horizonte e arredores foram examinados cerca de 1.100 km, dos quais aproximadamente 90% poderiam ser aproveitados para o transporte de passageiros e/ou linhas curtas.
Os trilhos criados no século 19 podem ser aproveitados, mas com a necessidade de modificações nos traçados para aumentar a velocidade. À época, os trens trafegavam a 60 km por hora, e a ideia é que as novas composições superem a média de 120 km/h.
Abandono de uma ferrovia em Minas Gerais
Ainda o aproveitamento da malha existente tem se mostrado inviável em grande parte dos trechos, e a construção do sistema deverá demandar a ampliação de toda a infraestrutura ferroviária, com implantação, inclusive, de novas pontes, viadutos e um significativo volume de terraplenagem. Também é comum observar, durante os trajetos, trechos com avanço da vegetação e precariedade nos taludes de concreto que sustentam a entrada e a saída de túnel.
ACIDENTES
Tão importante quanto a garantia da infraestrutura é a segurança dos profissionais que atuam na malha ferroviária e da população. A ANTT é responsável por fiscalizar o acompanhamento da prestação do serviço público de transporte ferroviário de cargas concedido, a conservação do patrimônio público arrendado, bem como aspectos econômicos e financeiros das concessões.
Motorista se arrisca em cruzamento
Com o intuito de tornar a fiscalização de acidentes ferroviários mais inteligente e eficiente, a agência desenvolveu um sistema que é alimentado pelas concessionárias, sejam eles graves ou não. Segundo dados da ANTT, entre 2006 e 2013, foram registrados 8.738 acidentes ferroviários.
Cruzamento vulnerável a acidentes
Minas Gerais tem mais de 1.600 cruzamentos da malha ferroviária, que, por natureza, são áreas de risco. “Essas passagens de nível são perigosas, independentemente do fluxo de veículos. O ideal é que cada uma delas fosse sinalizada com cancela, aviso sonoro e luminoso. A cruz de Santo André é um componente. É insuficiente por si só, mesmo na área rural. Ela é o indicador final e deve estar instalada a 500 m da ferrovia para o motorista saber: chegamos”.
A Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) indica cerca de 25 pontos críticos, por questões de visibilidade e quantidade de veículos que circulam pelo local. Quinze cruzamentos, como os de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, e Itaúna, no Centro-Oeste de Minas, ganharam sinalização audiovisual, com pisca-pisca ininterrupto em amarelo e vermelho e alerta sonoro que começa a soar quando o trem está a 300 m. Em Itaúna, onde a via férrea corta a cidade, com impactos no trânsito local no horário de pico, um plano já foi elaborado para transpor os trilhos para a zona rural.
Cruzamento perigoso, com travessia de pedestres, veículos e trens
O trem não para imediatamente. Mesmo acionando o freio de emergência, ele ainda leva um tempo para interromper o movimento. Nesse sentido, é fundamental o respeito dos motoristas de veículos e pedestres às orientações. Nos casos de acidentes, as vítimas não podem contar com o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT).
A Constituição Federal de 1988 dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Acidente entre caminhão e trem
Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em casos de acidentes em linha férrea por falta de fiscalização, prevalece a orientação jurisprudencial no sentido de que é civilmente responsável, por culpa concorrente, “a concessionária do transporte ferroviário pelo falecimento de pedestre vítima de atropelamento por trem em via férrea, porquanto incumbe à empresa que explora essa atividade cercar e fiscalizar, devidamente, a linha, de modo a impedir sua invasão por terceiros, notadamente em locais urbanos e populosos”
PASSANDO “O TREM”
É importante registrar que a equipe de Entre-Vias contatou diversas prefeituras do Estado para ouvir sobre a gestão das ferrovias. Os órgãos públicos municipais orientaram contatar as concessionárias. Essas, por sua vez, passaram a responsabilidade para a ANTT – que orientou consultar dados e informações no site institucional.
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