Sistema descarrilhado

Malha ferroviária é o retrato da falta de investimento em mobilidade urbana. População sofre com abandono e insegurança

Capa / 02 de Dezembro de 2014 / 0 Comentários

Custo de construção de apenas 1 km de ferrovia é de cerca de R$ 3 milhões, sem contar pontes e viadutos. Um trem abandonado causa um vultoso prejuízo financeiro

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O trem faz parte da história econô­mica, social e cultural do Brasil, principalmente para Minas Ge­rais. Os trilhos que costuraram encontros, promoveram transporte de mercadorias e oportunidades enfrentam o desafio de sobrevivência. Dos 28.190km da malha ferroviária nacional, um terço é produtivo, transportando minério, e os demais estão subutilizados. No período imperial, a linha férrea tinha um terço da extensão atual, mas sua ocupação era equivalente.

EXTENSÃO DA MALHA FERROVIÁRIA – 2013 (EM KM)

Fonte: ANTT​

Recursos vultosos e longo prazo para a execução das obras são as principais razões da falta de investimento no setor ferroviário. Segundo estimativas da Asso­ciação Nacional de Transporte Ferroviário (ANTF), o custo de construção de apenas 1 km de ferrovia é de cerca de R$ 3 mi­lhões, sem contar pontes e viadutos. Se comparado com a elaboração de uma rodovia, esse valor é sete vezes maior. A construção também leva mais tempo: em seis meses abrem-se 500 km de estradas de terra, e a mesma extensão de ferrovia leva cinco anos.

Esse cenário fez o governo mudar os ru­mos e colocar em segundo plano o modal férreo. Em 1992, iniciou a transferência das malhas para a iniciativa privada, durante um período de 30 anos, prorrogáveis por mais 30. A Agência Nacional de Transportes Ter­restres (ANTT) fiscaliza 12 concessões fer­roviárias. A iniciativa privada arrendou com o intuito de focar somente no transporte de carga; 80% dos mais de 50 mil imóveis per­tencentes à extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) não estavam registrados e não foi realizado sequer um inventário dos bens.

Visando ampliar a escala de investi­mentos públicos e privados em infraes­trutura ferroviária, rodoviária, hidroviária, portuária e aeroportuária, o governo fe­deral lançou em 2012 o Programa de In­vestimentos em Logística (PIL). Em linhas gerais, a iniciativa busca restabelecer o planejamento integrado dos transportes, de forma a implantar uma rede de infraes­trutura de transporte moderna e eficiente, capaz de prover maior competitividade ao país, bem como fomentar o desenvolvi­mento econômico e social.

Carros e trens disputam espaço

No modal ferroviário, o PIL busca, es­sencialmente, expandir a capacidade de transporte da malha ferroviária nacional, resgatar a ferrovia como alternativa logísti­ca e reduzir quantidade de fretes. Para isso, buscou-se desenvolver um modelo de ex­ploração capaz de propiciar amplo acesso à malha ferroviária, de forma que diversos setores da economia possam usufruir da infraestrutura ferroviária.

RADIOGRAFIA DO SETOR

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) avaliou esse programa e os principais marcos regulatórios recentes da malha ferroviária brasileira. No estudo o ins­tituto analisou o setor desde 1997, quando o sistema foi quase integralmente repassado à administração privada, por meio de con­cessões. De acordo com o texto, os investi­mentos privados na recuperação da malha, modernização de locomotivas e vagões to­talizaram aproximadamente R$ 37 bilhões entre 2002 e 2012.

O retrato do abandono

O PIL estabeleceu como meta a cons­trução ou melhoria de 10 mil km de estra­das de ferro e, para isso, seriam necessários R$ 91 bilhões.

Paralelamente, a participação percen­tual do transporte por ferrovias, na matriz brasileira de transporte de carga, passou de cerca de 15%, à época das concessões, para algo em torno de 25% na atualidade – a estimativa é de que atinja 35% no final da década de 2020.

Acidente entre trem e carro

Contudo, apesar dos avanços, o modelo de regulação econômica preconizado nos contratos apresentou pontos falhos, como: não estimular um maior nível de investi­mentos, não propiciar melhor utilização da malha ferroviária em toda a sua extensão e não permitir maior concorrência entre as concessionárias, principalmente por conta das restrições à utilização de instrumentos como o Direito de Passagem e o Tráfego Mútuo.

Outro problema apontado pelo estudo refere-se à devolução de trechos pouco produtivos pelas concessionárias ao poder concedente. Em alguns casos, ao fim dos contratos, o patrimônio pode ser devolvido à União no mesmo estado de conservação em que foi entregue às concessionárias.

Pátio ferroviário abandonado

RAIO-X EM MINAS

O trem é intrínseco à história de Minas Gerais, sendo fator comum no imaginário, na linguagem e na cultura. Porém, vem per­dendo espaço. Devido à ausência de utili­zação, após 17 anos sob sua concessão, a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) devolverá à União 3.800 km de estradas de ferro por falta de viabilidade econômica. Um dos tre­chos, entre Sabará e Miguel Burnier, com 84 km de extensão, está aos pedaços. Nes­tas duas últimas décadas, foi saqueado e sofreu com a falta de cuidados, segurança e manutenção, que estavam a cargo da FCA.

Estação Eugênio de Melo retrata os anos de abandono da ferrovia brasileira

Incluindo trechos da Vale e MRS, so­mente na região metropolitana de Belo Horizonte e arredores foram examinados cerca de 1.100 km, dos quais aproxima­damente 90% poderiam ser aproveitados para o transporte de passageiros e/ou li­nhas curtas.

Os trilhos criados no século 19 podem ser aproveitados, mas com a necessidade de modificações nos traçados para aumentar a velocidade. À época, os trens trafegavam a 60 km por hora, e a ideia é que as novas composições superem a média de 120 km/h.

Abandono de uma ferrovia em Minas Gerais

Ainda o aproveitamento da malha exis­tente tem se mostrado inviável em grande parte dos trechos, e a construção do siste­ma deverá demandar a ampliação de toda a infraestrutura ferroviária, com implanta­ção, inclusive, de novas pontes, viadutos e um significativo volume de terraplenagem. Também é comum observar, durante os tra­jetos, trechos com avanço da vegetação e precariedade nos taludes de concreto que sustentam a entrada e a saída de túnel.

ACIDENTES

Tão importante quanto a garantia da infraestrutura é a segurança dos profissio­nais que atuam na malha ferroviária e da população. A ANTT é responsável por fis­calizar o acompanhamento da prestação do serviço público de transporte ferroviá­rio de cargas concedido, a conservação do patrimônio público arrendado, bem como aspectos econômicos e financeiros das concessões.

Motorista se arrisca em cruzamento

Com o intuito de tornar a fiscalização de acidentes ferroviários mais inteligen­te e eficiente, a agência desenvolveu um sistema que é alimentado pelas concessio­nárias, sejam eles graves ou não. Segundo dados da ANTT, entre 2006 e 2013, foram registrados 8.738 acidentes ferroviários.

Cruzamento vulnerável a acidentes

Minas Gerais tem mais de 1.600 cru­zamentos da malha ferroviária, que, por natureza, são áreas de risco. “Essas pas­sagens de nível são perigosas, indepen­dentemente do fluxo de veículos. O ideal é que cada uma delas fosse sinalizada com cancela, aviso sonoro e luminoso. A cruz de Santo André é um componente. É insu­ficiente por si só, mesmo na área rural. Ela é o indicador final e deve estar instalada a 500 m da ferrovia para o motorista saber: chegamos”.

A Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) indica cerca de 25 pontos críticos, por questões de visibilidade e quantidade de veículos que circulam pelo local. Quinze cruzamentos, como os de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, e Itaú­na, no Centro-Oeste de Minas, ganharam sinalização audiovisual, com pisca-pisca ininterrupto em amarelo e vermelho e alerta sonoro que começa a soar quando o trem está a 300 m. Em Itaúna, onde a via férrea corta a cidade, com impactos no trânsito local no horário de pico, um plano já foi elaborado para transpor os trilhos para a zona rural.

Cruzamento perigoso, com travessia de pedestres, veículos e trens

O trem não para imediatamente. Mes­mo acionando o freio de emergência, ele ainda leva um tempo para interromper o movimento. Nesse sentido, é fundamen­tal o respeito dos motoristas de veículos e pedestres às orientações. Nos casos de acidentes, as vítimas não podem contar com o Seguro Obrigatório de Danos Pesso­ais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT).

A Constituição Federal de 1988 dis­põe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestado­ras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos ca­sos de dolo ou culpa”.

Acidente entre caminhão e trem

Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em casos de acidentes em linha férrea por falta de fiscalização, prevalece a orientação jurisprudencial no sentido de que é civil­mente responsável, por culpa concorrente, “a concessionária do transporte ferrovi­ário pelo falecimento de pedestre vítima de atropelamento por trem em via férrea, porquanto incumbe à empresa que explora essa atividade cercar e fiscalizar, devida­mente, a linha, de modo a impedir sua in­vasão por terceiros, notadamente em locais urbanos e populosos”

 

PASSANDO “O TREM”
É importante registrar que a equipe de Entre-Vias contatou diversas prefeituras do Estado para ouvir sobre a gestão das ferrovias. Os órgãos públicos municipais orientaram contatar as concessionárias. Essas, por sua vez, passaram a responsabilidade para a ANTT – que orientou consultar dados e informações no site institucional.

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