SOB NOVA DIREÇÃO
Presidente Jair Bolsonaro entregou proposta de modificações no Código de Trânsito Brasileiro à Câmara dos Deputados. Entrevias ouviu opiniões contrárias e a favor do polêmico PL 3.267.
A- A A+O presidente Jair Bolsonaro (PSL) foi pessoalmente, em 4 de junho último, à Câmara dos Deputados para entregar o Projeto de Lei (PL) 3.267/19, de autoria do Poder Executivo, que faz diversas alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), criado pela Lei 9.503/97. A proposta, que será analisada por uma comissão especial formada por 34 titulares, modifica 16 artigos, inclui dois e revoga, no todo ou em parte, outros oito. Se for aprovado, o PL seguirá para o Senado sem precisar passar pelo Plenário da Câmara.
De acordo com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, a ideia é desburocratizar processos e facilitar a vida dos condutores. “O Código [de Trânsito] já é antigo, precisa de atualização. Dois terços das penalidades são graves ou gravíssimas. Então, acaba ficando muito fácil o cidadão atingir a pontuação [máxima] e perder a carteira. E isso tem se mostrado ineficaz, porque os órgãos executivos de trânsito não conseguem operacionalizar os processos para a suspensão do direito de dirigir”, afirmou Freitas em reportagem oficial do governo federal.
Para o secretário Nacional de Transportes Terrestres, general Jamil Megid, as alterações propostas agilizariam a condução dos processos graves de infração, dando maior celeridade aos casos de conduta de risco, e aprimorariam a gestão, corrigindo falhas administrativas. O secretário acrescentou que, paralelamente a isso, haverá diversas ações educativas no trânsito. “Nossa ideia é ampliar a discussão sobre esses temas relevantes para os brasileiros. Por isso, a elaboração de um projeto de lei que propõe ampliar o debate e a participação de toda a sociedade, além de modernizar progressivamente o trânsito para os brasileiros”, disse Megid na mesma reportagem.
Polêmico
As alterações propostas pelo PL 3.267, no entanto, têm gerado divergências de opiniões quanto à necessidade e à efetividade delas. Para o educador de trânsito inspetor De Paula, a proposta é um grande retrocesso, indo na contramão do que foi proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU). “A Década de Ação pela Redução de Acidentes de Trânsito iniciou-se em 2011 e finda em 2020. Acredito que o que motivou o presidente Jair Bolsonaro a apresentar essas medidas tenham sido as promessas de campanha e o populismo. Em qualquer tipo de mudança no CTB que afete diretamente o motorista profissional, devem-se ouvir os representantes da categoria antes de sair dando canetada onde pouco se conhece”, argumenta De Paula.
O diretor da 308ª Circunscrição Regional de Trânsito do Departamento de Trânsito de São Paulo (Detran/SP), Tercílio Rogério Gomes de Faria, ratifica a avaliação do inspetor e ressalta que, “embora a legislação atual possua inúmeras falhas, também tem muitos pontos positivos, desde que aplicada e fiscalizada corretamente, não havendo, assim, a necessidade de alterações, conforme proposto pelo presidente da República, que, ao nosso sentir, deveria se ater ao aprimoramento da norma, intensificando os mecanismos de fiscalização e o combate à impunidade no trânsito”.
No âmbito do Legislativo, os parlamentares têm manifestado opiniões diversas a respeito de possíveis alterações no CTB. O deputado federal Ronaldo Santini (PTB/RS) avalia que as propostas vêm com a intenção de avanço. “Para a sociedade e para os motoristas, existem pontos positivos do aspecto da diminuição de custos, como o aumento do prazo para renovar a carteira. Para o transportador, os impactos nesse sentido contribuem para que se diminua a rotatividade de motoristas. É muito frequente a troca, já que o condutor que perde a carteira tem que ser substituído. Nesse sentido, [o PL] facilita a vida do transportador”, considera Santini.
Já a deputada federal Christiane Yared (PL/PR) refuta: “A nova proposta afrouxa as medidas necessárias aos infratores. Temos que lembrar que essas infrações causam ao país um número gigantesco de mortes e assustadoras sequelas. Nós, que trabalhamos com o trânsito, sabemos que a matéria apresentada é preocupante na busca pelo trânsito mais humano e seguro e retrocede uma luta”, afirma Christiane.
Novo limite da CNH
Entre as alterações mais debatidas está a ampliação da pontuação máxima para suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Atualmente, o motorista que acumula 20 pontos em 12 meses perde temporariamente o direito de dirigir. O projeto apresentado eleva esse teto para 40 pontos. Já o motorista profissional teria que participar de curso de reciclagem sempre que, no período de um ano, atingisse 30 pontos (e não mais 14, como acontece hoje).
“Enxergamos como ponto mais crítico a alteração proposta no artigo 261 do CTB, que busca aumentar a pontuação necessária para que o condutor seja apenado com a suspensão do direito de dirigir, contribuindo, assim, ao nosso sentir, com o aumento significativo dos casos de descumprimento da legislação de trânsito vigente”, avalia Tercílio de Faria, do Detran/SP – ele também é especialista em gestão e direito de trânsito e em direito administrativo.
Por outro lado, o deputado federal Santini lembra que a flexibilização do limite de pontos na CNH era uma demanda antiga dos caminhoneiros. “Para muitos, isso pode não significar grande coisa, mas, para quem vive da profissão de motorista, para quem trabalha e dirige de forma profissional, como os caminhoneiros, é extremamente penoso ver essa gente perdendo a carteira por algumas infrações, às vezes, numa única viagem. Essas infrações, muitas vezes, estão travestidas de armadilhas dentro da rodovia. A perda da carteira acaba inviabilizando o sustento de uma família”, pondera o parlamentar.
Ele acrescenta que o objetivo é ampliar o limite para 40 pontos apenas para motoristas que têm uma vida bastante ativa ao volante. “Pelo fato de passarem longo tempo na estrada, eles têm muito mais chances de serem notificados, de cometerem infrações, ainda que elas não sejam de alto risco. Um motorista que é pego, hoje, com o caminhão transportando carga fora dos padrões de peso, por exemplo, é multado, notificado e ainda por cima recebe pontos na carteira. A ideia é que esse tipo de infração não tire dele o direito de trabalhar. O impacto seria apenas naquelas infrações que põem em risco a vida das pessoas. Nesse sentido, queremos fazer com que, ao se declarar motorista profissional, a pessoa tenha a obrigatoriedade de apresentar um exame a cada seis meses e outras exigências que pretendemos colocar ali”, diz Santini em relação à proposta de mudanças no CTB.
Validade da habilitação
Em outro ponto, o texto do PL 3.267 amplia de cinco para dez anos a validade da CNH. No caso de motoristas com mais de 65 anos, o prazo subiria dos atuais três para cinco anos. As justificativas do governo são o aumento da expectativa de vida do brasileiro e a decisão de não impor ao cidadão habilitado uma exigência que não seja imprescindível para a capacidade dele de dirigir.
“Entendemos como retrocesso a tentativa de alterar o artigo 147 do CTB, de forma a ampliar a validade da CNH. Tal alteração, além de adiar a avaliação dos condutores de veículos automotores, dificultará ainda mais a aplicação das penalidades administrativas de suspensão e cassação do direito de dirigir, que prescrevem em cinco anos”, pontua Tercílio.
De acordo com o projeto de lei, a ampliação da validade da carteira de motorista para dez anos visa diminuir os gastos do condutor com a renovação. “Em minha opinião, ao fazer esse processo, seria muito mais sábio por parte do governo baixar o custo da carteira e exigir igualmente a renovação. Cinco anos na vida de uma pessoa que está com 50 ou de outra que está com 20 representam uma grande diferença. De 20 para 25, quase não mudam, mas, de 50 para 55 anos, mudam bastante as condições do motorista. Se uma pessoa está hoje com 40 anos e vai renovar só aos 50 ou se está com 50 e só vai renovar aos 60 anos, você tem aí certamente alguma perda da visão, da capacidade motora e outros problemas de saúde decorrentes da idade que precisam ser levados em conta”, considera o deputado Santini, mostrando-se contrário a esse trecho do PL.
Contra o parlamentar, o Observatório Nacional de Segurança Viária sugere a renovação da CNH a cada década para todas as categorias, com a necessidade da realização de exames clínicos e psicológicos apenas para os condutores que exercem atividade remunerada; a cada cinco anos, no caso de condutores com 60 anos ou mais; e, a cada dois anos, para quem tem mais de 75 anos. “A ampliação do tempo de renovação deve ser precedida de critérios que envolvam uma avaliação clínica e psicológica do condutor, de acordo com a faixa etária e a atividade. Condutores que exercem atividades remuneradas são os que passam a maior parte do tempo do dia se deslocando no trânsito, necessitando, assim, de um acompanhamento de saúde mais frequente. A partir de certa idade – 60 a 75 anos –, alguns cuidados também devem ser tomados quanto à condução de veículos automotores, principalmente relacionados aos reflexos a determinadas situações”, enfatiza o diretor-presidente do Observatório, José Aurélio Ramalho.
O texto do Executivo também acaba com o prazo de 15 dias para que o candidato à obtenção do documento de habilitação que for reprovado no exame escrito ou prático possa refazer a prova. Para o educador de trânsito inspetor De Paula, esse é um ponto favorável. A motivação do governo para essa nova proposta parte do princípio de que nem sempre a reprovação se dá por desconhecimento ou despreparo, podendo ser, na verdade, algum problema momentâneo.
No caso de Autorização Especial de Trânsito para veículo de carga acima do peso, o projeto deixa de tratar apenas da carga indivisível e passa a abranger todos os tipos de carga, permitindo o transporte dela também por períodos e não somente por viagens.
Exame toxicológico
Outra medida que impacta diretamente a atuação do transporte é a proposição que exclui a exigência de exame toxicológico para motoristas profissionais de ônibus, caminhões e veículos semelhantes na obtenção da habilitação ou na renovação da carteira. O governo argumenta que o procedimento é “caríssimo” e nem sempre é preciso. Esse foi um ponto em que as fontes ouvidas nesta reportagem chegaram a um consenso, e elas discordaram da ideia de haver alteração.
“O exame toxicológico é de suma importância e força o caminhoneiro a cuidar mais da saúde. Esse teste veio não para punir o motorista profissional, mas para contribuir com a saúde da categoria. Milhares desses profissionais, especialmente os autônomos, não cumprem o descanso exigido pela lei, não têm limite de velocidade, e a maioria está doente, tem pressão alta, é obesa, enxerga e alimenta-se mal e trabalha até 50 horas sem parar para pagar a prestação cara do caminhão. Já os profissionais do volante de empresas são cobrados pela lei vigente”, avalia o inspetor De Paula.
Segundo o deputado federal Santini, todos os profissionais do transporte com os quais conversa são conscientes e não querem a extinção do exame. Ao contrário: muitos querem, inclusive, que ele seja realizado com mais frequência. “O que está por trás do problema? É a questão do custo. Então, a proposta que a gente pretende apresentar é que esse exame seja realizado a cada seis meses para motoristas profissionais e que seja custeado pelo Sistema Único de Saúde”, adianta o parlamentar.
A deputada Christiane também afirma que os profissionais do transporte têm consciência da importância do teste toxicológico. “Todos querem um país melhor, com trânsito mais seguro, e a mudança de comportamento de cada um muda a realidade”, diz ela.
Outro item que poderá ser revogado no CTB é o que prevê a cassação da habilitação do condutor condenado judicialmente por delito de trânsito. A justificativa é que ele tem gerado distorções na interpretação das sanções. “Entre as aplicáveis por decisão judicial a cassação não está inserida. Logo, a transformação de uma suspensão da CNH por decisão judicial, que pode ir de dois meses a cinco anos, não pode ser transformada em cassação por decisão administrativa”, defende o Executivo.
Faróis
A proposta acaba também com a multa para quem trafegar em rodovias durante o dia com os faróis apagados. O texto prevê o uso do farol apenas nas rodovias de faixas simples, não duplicadas, e somente nos casos em que os veículos não possuírem a luz de rodagem diurna (de LED). Nas rodovias de faixas simples, quem não mantiver a luz acesa estará cometendo infração leve, mas só haverá multa se o proprietário do veículo for pessoa jurídica e não houver identificação do condutor, conforme consta no PL 3.267.
O governo argumenta que a obrigação de manter os faróis acesos nas rodovias federais não levou em consideração as altas temperaturas brasileiras, que diminuem a vida útil das lâmpadas dos veículos atualmente em circulação, uma vez que elas não foram produzidas para permanecerem acesas durante todo o tempo. Nesse sentido, o Executivo federal aproveita para inserir no projeto a exigência de que os veículos novos sejam fabricados com luzes de rodagem diurna, conforme requisitos já estabelecidos pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), permitindo o aumento da visibilidade sem que seja comprometido o sistema de luzes.
O Observatório Nacional de Segurança Viária, todavia, rebate essa possibilidade de mudança, ressaltando que os faróis acesos durante o dia contribuem para reduzir acidentes nas rodovias, pois quem ultrapassa tem a noção de que completou a manobra de forma completa.
Segurança
Ainda no quesito segurança, a nova proposta apresenta dois novos incisos para o artigo 244 que tratam da condução de motocicleta com capacete sem viseira ou sem óculos de proteção, sendo essa uma infração de natureza média. Atualmente, a viseira levantada ou a ausência dos óculos está regulamentada pela Resolução 453/2013 do Contran, que classifica o ato como infração leve pelo artigo 169 do CTB (dirigir sem atenção ou cuidados indispensáveis à segurança). Dessa forma, ocorreria o aumento da penalidade, e não a diminuição, com a suspensão do direito de pilotar.
Como medida positiva, o diretor-presidente do Observatório destaca a proposta de que veículo com recall em aberto não seja licenciado, levando em conta que muitos proprietários não realizam o serviço.
“Um ponto que necessita ser amplamente debatido é o uso da cadeirinha. O caput do artigo 168 que classifica como infração gravíssima transportar crianças sem atentar para as regras do CTB não foi revogado na proposta. Portanto, entendemos que ele está em vigor e pode surtir efeitos. A advertência por escrito, algo previsto no CTB para infrações de natureza leve ou média, aplicar-se-ia para o caput do novo artigo 64, que trata das exceções, como, por exemplo, uma criança que deveria estar na cadeirinha em razão do inciso I e está em um assento de elevação. Certo é que qualquer proposta que flexibilize o transporte de crianças no interior do veículo está totalmente equivocada. Por tal razão, inclusive, é que entendemos que o caput do artigo 168 permanece como infração gravíssima. Das crianças que morrem hoje no trânsito do Brasil, 40% estavam na condição de ocupantes de veículos. Essa é a principal causa de morte desse público”, ressalta José Aurélio Ramalho.
Para a deputada federal Christiane Yared, esse é o ponto mais crítico. “A falta de punição aos pais é de extrema relevância. O maior assassino de meninas e meninos hoje é o trânsito, porque os pais insistem em fazer a vontade da criança, que não gosta de ficar presa na cadeirinha”, destaca a parlamentar.
Bicicletas motorizadas
O projeto de lei também determina que o Contran especifique as bicicletas motorizadas e os veículos equivalentes que estarão dispensados de emplacamento. Com a medida, o governo pretende combater acidentes envolvendo esses automóveis.
Para evitar ambiguidades, o projeto altera o conceito de ciclomotor previsto no Código de Trânsito Brasileiro, que hoje não contempla os veículos movidos por motor elétrico, já previstos em resolução do Contran.
O PL 3.267 tipifica como infração média a condução de motocicleta ou o transporte de passageiro com o capacete de segurança sem viseira ou óculos de proteção ou em desacordo com a regulamentação do Contran.
Aspectos gerais
Sobre as propostas de alterações do CTB, José Aurélio Ramalho diz que campanhas de conscientização, multas mais altas para comportamentos de alto risco – como falar ao celular ao volante ou dirigir em alta velocidade –, além da crise econômica, que reduziu o número de viagens urbanas e rodoviárias nos últimos anos, são motivos para a queda de acidentes. Porém, as ocorrências óbito podem voltar a crescer com o afrouxamento das leis de trânsito, na avaliação do diretor-presidente do Observatório.
Ele vê com ressalvas a argumentação de que existe uma “indústria da multa” e diz concordar com as reclamações, inclusive do presidente Bolsonaro, de que há rodovias com radares que provocam reduções bruscas de velocidade. “Mas isso decorre justamente da incompetência do poder público, que não consegue fazer uma adequação de infraestrutura para deixar o local mais seguro, e coloca um radar naquele ponto perigoso”, critica Ramalho.
Para o Observatório, o governo deveria resolver esses problemas pontualmente, e não simplesmente tentar acabar com os radares, que, em geral, têm como efeito aumentar a segurança das estradas. A entidade defende ainda que a educação no trânsito seja ensinada nas escolas, como prevê o Código de Trânsito Brasileiro.
O inspetor De Paula acrescenta que, se aprovado, o novo código vai afetar muito o funcionamento do trânsito no Brasil e, ainda mais, o comportamento dos condutores. “Muito do que foi apresentado nessa proposta premia infratores contumazes e está maquiado de benefícios. Temos que observar que algumas das medidas são, no mínimo, perigosas. É importante que todos, em todos os níveis da sociedade – empresários transportadores, embarcadores, cooperativas, sindicatos e associações –, tenham conhecimento da proposta na íntegra e das consequências da aprovação dela”, sugere De Paula.
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