TRC sem chão

Má qualidade do asfalto provoca impactos diretos no transporte rodoviário de cargas, aumentando os gastos, o valor do frete, os preços das mercadorias e, principalmente, a insegurança nas estradas. Técnica utilizada no Brasil ignora interferências do

Capa / 17 de Setembro de 2019 / 0 Comentários
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Elemento central na economia brasileira, o asfalto tem função essencial na garantia do bom estado de conservação das rodovias, já que ele é utilizado em praticamente todos os trechos pavimentados do país. No entanto, os aumentos sucessivos no preço desse insumo nos últimos anos e a escassez de investimentos do poder público afetam diretamente o transporte rodoviário de cargas (TRC) e toda a sociedade. Uma infraestrutura precária tem impacto direto nos custos operacionais do setor, no valor do frete e no preço da mercadoria transportada, além de contribuir para acidentes. E, quando há aumento do valor do asfalto, o custo de execução das obras de construção e de manutenção rodoviárias também sobe. Como consequência, os reparos e a pavimentação de novos trechos são reduzidos devido à limitação do orçamento público.


No Brasil, o asfalto é utilizado em praticamente todos os trechos pavimentados

“Em rodovia ruim, os caminhões andam muito devagar, em marcha pesada, gastando mais tempo de viagem, combustível e pneu, porque em todo momento é necessário frear para desviar de buracos, trincas e problemas na pista. Isso sem falar que o motorista fica chacoalhando na cabine, sentindo o impacto do pavimento ruim e sujeito a acidentes”, afirma o presidente da Associação Particular de Ajuda ao Colega (Apac Sul), Márcio Arantes.

O professor José Leomar Fernandes Júnior, titular do Departamento de Engenharia de Transportes da Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP), acrescenta que manter os pavimentos em boas condições é uma economia, porque significa proporcionar transportes mais seguros, ágeis e com menor custo de manutenção. “Infelizmente, muitas vezes, o cenário não é visto dessa forma: os órgãos públicos não dão valor no sentido de manterem a pavimentação para garantirem o transporte rodoviário”, diz o docente.

São vários os problemas em torno da atual cadeia do asfalto, que representa o principal meio por onde são transportadas cargas e passageiros no Brasil. Segundo o estudo “Impactos da qualidade do asfalto sobre o transporte rodoviário”, elaborado pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), os desafios passam pela normatização, seguem pela produção asfáltica e vão até a fiscalização.


Especialistas frisam que as especificações atuais são defasadas e insatisfatórias para prever o comportamento do material na rodovia. “O Brasil possui uma grande diversidade climática e de composição de tráfego. As especificações do CAP [Cimento Asfáltico de Petróleo] deveriam ser capazes de prever e de avaliar o comportamento do asfalto sob cada uma dessas condições específicas, inclusive após determinado período de serviço, ou seja, simulando os efeitos do tráfego e do intemperismo ao longo dos anos de serviço da rodovia”, destaca o estudo.

Outro problema relacionado à atual especificação é que ela prioriza ensaios de verificação da qualidade dos materiais mais baratos em detrimento dos mais efetivos. “Além disso, foi relatado nas entrevistas que os ensaios e os equipamentos adotados pela especificação Superpave não são tão mais caros ou complexos do que os já utilizados atualmente em alguns ensaios da normativa brasileira. Assim, não seriam demasiadamente complexos a adequação e o treinamento dos profissionais para realizá-los, e esse investimento inicial resultaria em melhor desempenho futuro, menor custo de manutenção e maior durabilidade do pavimento”, ressalta a CNT.

Monopólio da Petrobras

A concentração da matéria-prima para a produção de asfalto na mão de um único fornecedor é negativa, na avaliação de especialistas. Apesar de a legislação admitir que outras empresas realizem o refino do petróleo, a Petrobras ainda é a única que desempenha essa atividade e fornece asfalto no país. Dessa forma, a estatal tem o controle total do preço e do tipo de asfalto utilizado em território nacional.

O estudo “Pavimento de vias no Brasil: infraestrutura de transportes terrestres rodoviários e cadeias produtivas da pavimentação”, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), mostra a evolução do preço dos dois principais cimentos asfálticos produzidos e comercializados pela Petrobras: CAP 30-45 e CAP 50-70. “Os preços dos cimentos asfálticos ficaram estáveis por longo período, de janeiro de 2007 a setembro de 2014. Desde esse momento, os produtos sofreram reajustes intensos. Em meados de 2016, os cimentos asfálticos já estavam mais de 80% mais caros do que em setembro de 2014. No fim de 2016 e no início de 2017, os preços apresentaram pequena queda, mas ainda acumulavam variações de mais de 66% na comparação entre fevereiro de 2017 e setembro de 2014”, diz o relatório.


Na época, os reajustes intensos foram justificados pela Petrobras como sendo decorrentes de parâmetros internos da empresa, porém a estatal não detalhou a metodologia adotada. A Petrobras alegou ainda que o valor do asfalto não teria relação direta com o  do petróleo por possuir nuances específicas do segmento, como condições climáticas e demandas das obras de infraestrutura.

De setembro de 2017 a fevereiro deste ano, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o preço do asfalto no Brasil acumulou alta de 108%. Enquanto isso, o do barril do petróleo subiu 33,3%. A diferença é resultado de um descolamento de preços ocorrido de outubro de 2018 em diante. Desde então, o valor do CAP subiu 27%, enquanto o do petróleo caiu aproximadamente 22%. Em síntese: o asfalto continua se valorizando, mesmo quando o preço do petróleo está em queda.

A liberdade da política de preços da Petrobras também é garantida pela deficiência portuária no Brasil, que impede a importação do asfalto para recebimento do material, especificamente quando importado a quente. Como os portos brasileiros não possuem capacidade de tancagem adequada, inúmeras viagens de caminhões-tanque são necessárias para se descarregar toda a mercadoria, tornando o processo demorado, caro e praticamente inviável.


Fiscalização

Além dos pontos citados, a ausência de fiscalização, tanto nas refinarias quanto nas obras, impacta negativamente as condições das rodovias. A ANP não fiscaliza o material durante a produção, tampouco no processo de distribuição. Os órgãos executores das obras públicas, por sua vez, também possuem pouca capacidade de fiscalizar os ensaios nas intervenções. Esses fatores somados contribuem para potencializar possíveis erros e omissões das empreiteiras, prejudicando, assim, a qualidade da infraestrutura, conforme apontado pelo estudo da CNT.

“O único controle realizado pela agência quanto às especificações do material comercializado é por meio do Certificado de Qualidade emitido pela Petrobras, ou pelas distribuidoras, quando há modificação do asfalto. Nesse documento, constam as especificações do CAP comercializado. A ANP realiza a conferência do documento, mas sua anuência não é requisito para a comercialização do produto. Por isso, muitas vezes, quando o certificado é analisado pela ANP, o produto já foi inclusive comercializado e utilizado”, aponta o levantamento da confederação.


Em resposta, a ANP citou a possibilidade de firmar um convênio com a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Asfaltos (Abeda), que está em fase de preparação, para a realização de análises de asfaltos em laboratórios certificados terceirizados, que seriam mantidos pela Abeda. No entanto, de acordo com a CNT, a validade e a efetividade dessa solução podem ser questionáveis, uma vez que o órgão fiscalizador deve possuir atuação independente dos fiscalizados; e a associação, como representante dos distribuidores de asfalto, constitui um dos principais fiscalizados pela agência no âmbito dos asfaltos. “Assim, sugere-se como alternativa a realização de convênios entre a ANP e universidades para a adequada execução dos ensaios e dos procedimentos de fiscalização”, recomenda a CNT.

Esfera público-privada

Conforme mostrado pela Pesquisa Anual da Indústria da Construção (Paic), elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase dois terços do asfalto produzido no Brasil são consumidos pelas construtoras, sendo direcionados às obras rodoviárias e de infraestrutura urbana. Dessa forma, os principais consumidores finais dos produtos de asfalto são as concessionárias, os departamentos estaduais e federal de estradas e as prefeituras.

Nas concessionárias, o monitoramento é mais preciso do que nas obras puramente públicas. A justificativa é que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) carece de estrutura para executar a fiscalização e o acompanhamento de todas as obras contratadas por ele, já que a maioria dos procedimentos exige a presença do fiscal em campo.

Uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2012 constatou que os controles internos do Dnit se mostraram insuficientes para aferir uma supervisão terceirizada. Por meio dos apontamentos desse relatório, concluiu-se que são falhos o controle e as fiscalizações por parte do empreiteiro contratado, do departamento e da empresa supervisora, facilitando a ocorrência de erros e comprometendo a qualidade e o desempenho final das rodovias brasileiras.


Para agravar a situação, foi constatado que entre as empreiteiras não existe uma cultura de devolução de material que não esteja em conformidade e, portanto, seja possivelmente inutilizado nas obras.

Durabilidade comprometida

A consequência desse cenário é sentida por toda a sociedade. O pavimento executado com asfalto, mais comum no país, tem vida útil estimada de 8 a 12 anos. Mas, na prática, os problemas estruturais começam a aparecer bem antes: em alguns casos, apenas sete meses após a conclusão das rodovias. A maioria das soluções é tomada de forma prematura, a exemplo das operações tapa-buracos e dos reparos em equipamentos de drenagem, o que proporciona uma melhoria imediata e futuros retrabalhos.

A metodologia utilizada no Brasil para projetar rodovias tem uma defasagem de quase 40 anos em relação à de países como Estados Unidos, Japão e Portugal. Esse último, por exemplo, emprega três zonas para calcular o impacto das variações climáticas sobre as técnicas e os materiais usados na construção de rodovias, enquanto o método utilizado por aqui não faz essa diferenciação para dar mais precisão ao projeto.

Grande parte das rodovias brasileiras foi construída na década de 1960. Os especialistas ouvidos pela CNT avaliam que a maior parte delas ultrapassou a vida útil prevista no projeto sem receber manutenção adequada nesse período. Para a recuperação, pode haver a necessidade de reconstrução parcial ou total, em casos particulares, com o uso sugerido do próprio pavimento reciclado. 

De acordo com o professor José Leomar Fernandes Júnior, da USP, a pavimentação asfáltica também foi priorizada nos Estados Unidos. O país norte-americano e o Brasil dependem do refino do petróleo e, consequentemente, têm que usar o produto que fica no barril. “O problema é que temos que fazer com que a pavimentação fruto desse produto tenha qualidade, que permita o tráfego com economia e todo o processo com qualidade”, enfatiza Fernandes Júnior.

Novos caminhos

Uma das principais soluções para a durabilidade da pavimentação é a utilização de concreto. No Brasil, ela ainda é incipiente, mas esse panorama tende a mudar, porque o material apresenta muitas utilidades e grande durabilidade devido à resistência a deformações.

A distribuição eficaz das tensões proporciona alta aderência do pneu, mais refletividade (ideal para a condução noturna), mais segurança (menor risco de aquaplanagem) e maior vida útil (de aproximadamente 30 anos, mais do que o dobro do pavimento asfáltico). Além disso, a utilização é fácil, e as rodovias não precisam ficar muito tempo inoperantes, porque a aplicação é rápida, e, desde que sejam obedecidas as recomendações, os resultados são considerados satisfatórios.

Um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Pesquisa do Canadá indica que caminhões podem economizar até 11% de combustível rodando em vias de concreto. Os técnicos justificam o resultado pela menor inércia que esse tipo de pavimento proporciona aos veículos pesados, já que a superfície de estradas assim é rígida, indeformável e estável.

A pavimentação com concreto não é novidade nas vias brasileiras. O país foi um dos primeiros a empregá-la, já no início do século XX, e a utilização foi intensificada até a década de 1970, diminuindo desde então por causa de aspectos da conjuntura econômico-financeira nacional.

De acordo com Fernandes Júnior, o tipo de pavimentação ideal depende sempre de projeto adequado e de análises econômicas. “Há espaço para pavimentações de concreto e asfáltica. Ambas têm vantagens e desvantagens. A primeira precisa ser muito bem planejada e construída, mas, se não usarmos o asfalto, ele irá para aterros sanitários, causando um impacto ambiental sério. O fundamental é fazer bem feito, por meio de um projeto bem estudado e estruturado”, reforça o professor da USP.

Sustentabilidade

O docente é precursor no Brasil de estudos que utilizam pneus nas obras de pavimentação asfáltica. Ele conta que os trabalhos começaram em 1994, e as duas teses de doutorado que trataram do tema foram orientadas por ele. Uma analisou pneus triturados, utilizando aqueles que poderiam causar impactos ambientais por meio de queimadas e vetores de doenças. O outro processo foi feito com umidade.

Esses estudos mostraram que o pneu na mistura asfáltica contribui para a resistência e a elasticidade da pavimentação. “É uma alternativa benéfica e utiliza pneus que não seriam usados, colaborando para reduzir o impacto ambiental”, diz Fernandes Júnior.

O professor conta que, no que diz respeito à tendência de pavimentação, muitos países caminham para o pavimento perpétuo, que tem duração de 50 anos. O método consiste em retirar a camada mais superficial, que tem contato com os veículos, e substituí-la a cada 25 anos. Assim, ela fica com maiores espessura, qualidade e durabilidade. O investimento vultoso seria somente o inicial.

Para a pavimentação ser considerada sustentável, ela deve ter elevada durabilidade, projeto adequado e execução que siga rigorosamente o que foi planejado. Dessa forma, é possível evitar que as vias exijam recapeamento a cada três ou quatro anos.


CONHEÇA OS PRINCIPAIS DEFEITOS ENCONTRADOS NO PAVIMENTO

FISSURAS: são fendas capilares no revestimento asfáltico que ainda não causam
problemas funcionais nem estruturais à rodovia. Elas estão posicionadas longitudinal, transversal ou obliquamente e perceptíveis à vista de quem está a até 1,5 m de distância.
A extensão das fissuras é inferior a 30 cm.
TRINCA TRANSVERSAL: trinca isolada em direção perpendicular ao eixo da via.
Se a extensão for de até 1 m, será denominada “trinca transversal curta”.
Quando a extensão for superior a 1 m, será chamada de “trinca transversal longa”.
É um defeito funcional (grandes trincamentos causam irregularidade)
e estrutural (enfraquecem o revestimento do pavimento).
TRINCA LONGITUDINAL: trinca isolada em direção predominantemente paralela
ao eixo da via. Se a extensão for de até 1 m, será denominada “trinca longitudinal curta”. Quando a extensão for superior a 1 m, haverá a trinca longitudinal longa.
Também é considerada um defeito funcional e estrutural.
TRINCAS EM MALHA TIPO “COURO DE JACARÉ”: conjunto de trincas interligadas sem direções definidas, assemelhando-se ao aspecto de couro de jacaré. É um defeito estrutural.
TRINCAS EM MALHA TIPO “BLOCO”: conjunto de trincas interligadas formando
blocos retangulares com lados bem-definidos. É outro tipo de defeito funcional
(grandes trincamentos em bloco causam irregularidade) e estrutural
(reduzem a integridade estrutural do pavimento).
AFUNDAMENTO PLÁSTICO: deformação permanente (plástica) caracterizada por depressão da superfície do pavimento acompanhada de solevamento (compensação volumétrica lateral). Quando a extensão é de até 6 m, denomina-se “afundamento
plástico local”. Para extensões maiores que 6 m e se o afundamento for localizado ao longo da trilha de roda, ele será chamado de “afundamento plástico de trilha de roda”.
AFUNDAMENTO DE CONSOLIDAÇÃO: deformação permanente caracterizada
por depressão da superfície do pavimento sem estar acompanhada de solevamento.
Quando a extensão é de até 6 m, ele é chamado de “afundamento de consolidação local”. Para extensões maiores que 6 m e se o afundamento estiver ao longo da trilha de roda,
será chamado de “afundamento de consolidação de trilha de roda”.
ONDULAÇÃO OU CORRUGAÇÃO: movimento plástico do revestimento, caracterizado
por ondulações ou corrugações (enrugamentos) transversais na superfície do pavimento.
ESCORREGAMENTO: deslocamento do revestimento em relação à camada
subjacente do pavimento com o aparecimento de fendas em meia-lua.
EXSUDAÇÃO: filme de material betuminoso que aparece na superfície do pavimento criando um brilho vítreo, causado pela migração do ligante por meio do revestimento.
DESGASTE: efeito do arrancamento progressivo do agregado do pavimento,
gerando a aspereza superficial do revestimento.
PANELA OU BURACO: cavidades de tamanhos variados no revestimento do pavimento.
REMENDO: panela preenchida com uma ou mais camadas de pavimentação.
Apesar de ser uma atividade de conservação, é considerado um defeito por apontar
um local de fragilidade e por impactar o conforto no rolamento. A deterioração
de remendos é o conjunto de danos existentes em uma área de remendo.

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