Vida animal pede passagem

Morte de bichos em rodovias dizima espécies, prejudica o ecossistema e causa perigo também para usuários

Capa / 12 de Maio de 2014 / 0 Comentários
A- A A+

Era uma vez, um lobo-guará macho que estava em busca de alimentos para seu filho que acabara de nascer. Com o fim das áreas de cerrado, ele precisava andar quilômetros para encontrar comida, enquanto a mãe vigiava o filhotinho. Contudo, ele não voltou. Ao atravessar a estrada que cortava seu habitat, foi atropelado e morreu.

A pequena narrativa não é uma ficção. É uma realidade que ocorre com frequência. A cada segundo, mais de 15 animais morrem nas estradas brasileiras. Diariamente, há estimativa de morte de mais de 1,3 milhão de bichos e, ao final de um ano, mais de 475 milhões de animais selvagens são atropelados
no Brasil. Os números estarrecedores são do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE), ligado à Universidade Federal de Lavras (Ufla).

De acordo com estudos do centro, cerca de 430 milhões de animais são pequenos vertebrados, como sapos, aves menores, cobras. Aproximadamente 43 milhões são de médio porte – gambás, lebres, macacos – e 2 milhões são de grande porte: onça-parda, lobos-guarás, onça-pintada, antas e capivaras.


Gambá mãe e seu filhote encontrados mortos em estrada do Mato Grosso

“Existem vários trabalhos que realizam o levantamento de espécies que são atropeladas em rodovias brasileiras e muitos apontam o atropelamento como agravo no risco de extinção de algumas espécies, uma vez que se encontra em risco de extermínio por outros fatores como perda e fragmentação de habitat e caça, por exemplo, o lobo-guará”, contextualiza o médico veterinário Felipe Coutinho Batista Esteves, presidente da organização não governamental Bem Viver  que socorre animais abandonados e
agredidos.

Ele explica o impacto ambiental, pois há um rompimento nos ciclos naturais, tanto na cadeia alimentar como reprodutivos e biológicos, diminuindo a biodiversidade em áreas com altos índices de atropelamentos. “Para a sociedade, tirando o risco de acidentes de trânsito, provocados principalmente por animais de grande porte, deve-se considerar que os animais possuem papéis biológicos importantes, como manutenção de ecossistemas, mantendo nichos ecológicos. Por isso é essencial sua preservação, considerando que cada um tem sua função.”

MAPA DA DESTRUIÇÃO

Segundo levantamento da Polícia Rodoviária Federal (PRF), nas estradas de Minas Gerais ocorreram 549 acidentes com animais no ano passado. O inspetor Aristides Junior informa que a instituição não conta com um mapeamento detalhado, como apresentação das espécies dizimadas e de rodovias com mais recorrência de acidentes. 

Cachorro-do-mato tenta atravessar e é acometido por veículo. Essa espécie é um animal selvagem

Outros órgãos públicos foram procurados por Entre-Vias, a fim de se fazer um panorama do cenário de atropelamento no Brasil. A assessoria de imprensa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) declarou que “o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) deve realizar o monitoramento de Atropelamento de Fauna a fim de identificar os principais pontos de ocorrência, servindo de base para indicação de possíveis medidas mitigadoras”. Contudo, o Dnit não retornou, até o fechamento desta reportagem, sobre as questões solicitadas.

O CBEE está fazendo um esforço para criar o Banco de Dados Brasileiro de Atro-pelamento de Fauna Selvagem (BAFS), com o intuito de reunir, sistematizar e disponibilizar informações sobre a mortalidade
nas rodovias e ferrovias brasileiras. O objetivo é ser uma ferramenta de gestão e conhecimento, contribuindo com diferentes segmentos da sociedade brasileira. As informações levantadas apontam que o Sudeste brasileiro é líder em atropelamento. O primeiro lugar é incentivado pelo grande número de rodovias que cortam os Estados e pelo intenso fluxo de veículos.

O médico veterinário Felipe Esteves explica que o período de maior recorrência de acidentes depende da espécie. “Animais de hábitos noturnos tendem a ser atropelados na parte da noite e durante a madrugada, assim como durante o dia os acidentes ocorrem com os de costumes diurnos. Porém, isso não exclui a possibilidade de inversão desse ciclo, uma vez que em determinada época do ano os bichos se deslocam mais em função de reprodução, oferta e procura de alimentos, além de mudanças climáticas. Répteis, por exemplo, tendem a ser mais atropelados em épocas de chuva, devido ao alagamento de suas tocas e às temperaturas mais frias, que fazem com que se desloquem mais para encontrar locais para abrigo e termorregulação corporal, atraindo-os para o asfalto quente. No caso de aves, o hábito de forragear as margens das rodovias e o voo que confere maior mobilidade aumenta a chance que se choquem contra os veículos.”

Entre os principais fatores que levam ao atropelamento de animais nas rodovias, pode-se ressaltar a sua localização em rotas de migração natural de algumas espécies​

Existe ainda um ciclo da morte de animais que aumenta o número de atropelamentos. Em áreas de agricultura e transporte de grãos, sementes e alimentos caem e se espalham pela rodovia, tornando atrativo para animais silvestres com esse hábito alimentar. Esses bichos são atropelados, o que atrai espécies de carnívoros e carniceiros, fechando o ciclo. Além disso, o lançamento de lixo pelos condutores e passageiros de veículos alimenta a probabilidade de atropelamentos.

INVASÃO DO HABITAT 

O ruído e a movimentação dos veículos também interferem no ciclo reprodutivo dos animais. “Sem dúvida, as consequências das interferências do homem no meio ambiente são desastrosas. Geralmente, os animais procuram áreas afastadas para se abrigar e reproduzir, excluindo algumas espécies que possuem poder adaptativo muito grande, convivendo pacificamente com os ruídos. Já na movimentação são nítidos os impactos para a reprodução. Animais em época reprodutiva tendem a se deslocar mais para encontrar parceiros, assim são obrigados a cruzar rodovias, afinal, sua área de circulação natural foi interrompida, o que aumenta significativamente a chance de serem atropelados.”

Entre os principais fatores que levam ao atropelamento de animais nas rodovias, pode-se ressaltar a sua localização em rotas de migração natural de algumas espécies ou dentro de áreas de preservação reduzidas e fragmentadas. A disponibilidade de alimento ao logo da estrada – que leva o animal a percorrer longas distâncias em sua margem –; presença de barreiras físicas como cercas de divisa de propriedades, que faz com que muitas vezes ele não consiga sair; além de falta de opções de passagem segura, são outros motivadores de acidentes.

Jaguarundi morto na BR-262, sentido Belo Horizonte/Uberlândia

Michelle Horovits, da assessoria de comunicação do Ibama, diz que as rodovias existentes estão passando por um processo de regularização ambiental. A Portaria 420/2011 do Ministério do Meio Ambiente dispõe sobre procedimentos a serem aplicados pelo instituto na regularização e no licenciamento ambiental das rodovias federais. O documento determina que o Ibama realize relatórios de controle ambiental, levando em consideração as peculiaridades de cada rodovia, observado as interações entre os meios biótico, físico e socioeconômico, compostos por um diagnóstico ambiental e programas de monitoramento de fauna, mitigação dos passivos ambientais, gerenciamento de riscos e planos de ação de emergência, educação e gestão ambiental.

Apesar da determinação, estão sendo ou foram realizados baixíssimos esforços em avaliar os efeitos do atropelamento de animais nas rodovias, segundo consultores ambientais. Eles enfatizam que o interesse em criar alternativas harmoniosas para a fauna prosseguir seu ciclo, mesmo com as estradas, é novo no Brasil. Por isso, precisa ser fiscalizado, atividade sob responsabilidade do Dnit. Esse órgão também deve incluir sinalizações em locais de travessia de faunas, que devem contar com redução de velocidade, bem como pontos para a travessia de animais.

ECOLOGICAMENTE CORRETO

Se não há garantia de cumprimento de todas as determinações, o caminho é partir para alternativas. Radares instalados em estradas diminuem a quantidade de acidentes envolvendo animais silvestres. No Pantanal, aparelhos de controle de velocidade na BR-262 entre Anastácio e Corumbá reduziram pela metade o índice de atropelamento.

Siriema encontrada na BR-359

Experiências de outros países mostram que é possível preservar a fauna. A Alemanha, onde estão as estradas ecologicamente mais corretas do planeta, combina cercas que impedem o acesso dos animais à pista, com viadutos pelos quais eles possam atravessar de um lado a outro, sem ter de enfrentar os carros.

Nos Everglades, imensa área de pântanos ao sul da Flórida, nos Estados Unidos, as rodovias de alta velocidade são suspensas nos trechos de maior concentração da fauna. Em outras regiões, vizinhas de parques nacionais, usam-se até aparelhos que emitem ondas ultrassônicas para afastar os animais da rodovia.

Em época de comunicação sem fronteira, a tecnologia tornou-se parceira. O aplicativo “Urubu Mobile” permite que os motoristas registrem fotos de atropelamento de animais a fim de diminuir a recorrência desses incidentes e auxiliar no planejamento de novas vias. Para utilizar o sistema, os interessados podem fazer o download no Google Play. Assim, quando encontrar um animal silvestre atropelado, basta fazer uma foto para que a posição geográfica e a data sejam marcadas automaticamente.

MOTORISTAS DO BEM

Outra solução, adotada no mundo inteiro, é estabelecer limites rigorosos de velocidade e punir motoristas infratores. “Aos meus olhos de educador de trânsito experiente e de muitos anos de estrada, sem sobram de dúvida eu aponto a imprudência, o desrespeito à sinalização, o excesso de velocidade como as principais causas de acidentes envolvendo animais, sejam eles de pequeno, médio ou de grande porte”, critica o especialista em trânsito Antonio de Paula, inspetor aposentado da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

A cada segundo, 15 animais morrem nas rodovias brasileiras

Inspetor De Paula enfatiza que a imprudência é responsável por mais de 40% das colisões com animais, e a desatenção dos motoristas é o maior vilão das ocorrências. Ele avalia que as campanhas de prevenção de acidentes com animais na pista, realizadas pelos governos, apresenta bons resultados, principalmente nos perímetros urbanos.

Nas pistas administradas por concessionárias, o foco das ações é na orientação aos proprietários de sítios e chácaras que contam com criação de animais sobre como evitar situações de riscos e como proceder nos casos em que ocorra a presença de animais na faixa de rolamento das rodovias. O especialista pontua que as concessionárias têm por obrigação o cadastramento de todas as propriedades e a realização de um trabalho preventivo, por meio do serviço de inspeção de tráfego e do circuito de câmeras, que realiza o monitoramento das rodovias. Ao identificar os casos, são acionadas as equipes de operações de resgate, que contam com pessoas treinadas e caminhões boiadeiros atuando no recolhimento dos animais.

“Choques com animais, mesmo os de pequeno porte, sempre trazem consequências graves. Dependendo da velocidade, bater em um cachorro poderá desestabilizar completamente o veículo, gerando um acidente de grandes proporções. Por isso, ao perceber animais na pista ou próximo dela, o correto é reduzir a velocidade ou mesmo parar. Não se deve acionar a buzina para espantá-los. É bom ligar os faróis e pisca-alerta para chamar a atenção de outros motoristas. Os animais, quando assustados, reagem de maneira imprevisível. Não é aconselhável acreditar que, ao ver o veículo, o animal vai fugir para frente”, orienta o educador, ressaltando que, em caso de colisão com animais de grande porte, o impacto ocorrerá na altura do para-brisa, podendo atingir os ocupantes do veículo.

AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Entrevias. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Entrevias poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.